Sábado, 20 Abril 2024

Juíza aposentada defende fim das prisões e da proibição às drogas

Juíza aposentada defende fim das prisões e da proibição às drogas

José Rabelo e Lívia Francez



Fotos: Gustavo Louzada
 
“Acreditar que o sistema prisional possa cumprir seu papel de reinserção é o mesmo que acreditar que alguém pode aprender a jogar futebol dentro de um elevador”
Eugenio Raúl Zaffaroni
 
A juíza aposentada Maria Lúcia Karam coloca o dedo na ferida. Diretora no Brasil da Law Enforcement Against Prohibition  (Leap-Brasil) – organização  fundada nos Estados Unidos com a missão de reduzir os inúmeros e danosos efeitos colaterais resultantes da guerra às drogas e diminuir a incidência de mortes, doenças, crimes e dependência, pondo fim à proibição das drogas –, ela defende a abolição prisional, ou seja, o fim das prisões, que se apresentam um modelo falido que, em vez de ressocializar, gera ainda mais violência e reincidência. 
 
Karam, que também já foi defensora pública, esteve em Vitória na quinta-feira (6) para participar do seminário Desencarceramento e Abolicionismo Penal, realizado na Assembleia Legislativa, como parte da programação da IV Semana Estadual dos Direitos Humanos, e falou a Século Diário sobre a proposta que defende. 
 
Para a magistrada aposentada, o Estado vende a ideia de que, ao retirar o infrator do convívio em sociedade, é possível ressocializá-lo atrás dos muros das prisões, o que não é verdade, já que não há nenhum beneficio efetivo no encarceramento.  
 
Além do desencarceramento total, Maria Lúcia também defende a legalização das drogas. Dessa forma, ela aponta, a violência gerada por ela, principalmente na cadeia produtiva, acaba. 
 
Século Diário - O jornal acompanha sistematicamente essa questão do sistema prisional e inclusive já fizemos várias denúncias. Quando defendemos uma posição pelos direitos humanos da população encarcerada e dos familiares, recebemos muitas críticas. A senhora propõe essa discussão,  também deve ser alvo de críticas. Como trabalha quando defende essa tese e como convencer a sociedade para que repense e não trate o assunto com repulsa?
 
Maria Lúcia Karam - O nosso sistema penal tem o que eu chamo de uma publicidade enganosa, e vende essa ideia de que a prisão resolveria todos os problemas e traria segurança, tranquilidade. Essa ideia do criminoso, de afastar do convívio social, tem raízes muito profundas, é a ideia do “bode expiatório”, que adquire uma força ainda maior quanto mais complexas são as sociedades. O criminoso é sempre o outro, é muito fácil identificar o mal, tudo acontece de ruim na pessoa do criminoso. E o sistema penal vende essa ideia de que punindo alguém, prendendo alguém, tudo vai estar resolvido. 
 
- E a sociedade compra essa ideia...
 
- A sociedade compra essa ideia, porque é muito cômodo identificar o mal numa pessoa, e ter esse sentimento de alívio, que foi apreendido aquele homicida, aquele estuprador, e que tudo vai ser resolvido.
 
- Mesmo sabendo que não há nada de positivo nisso.
 
- Primeiro, a história mostra que isso não foi resolvido. O discurso hoje é que a gente já aplica prisão como pena há 300 anos e, ao contrário, a violência teria crescido, a criminalidade teria crescido. Então, a realidade já mostra que esse instrumento não tem servido para trazer tranquilidade. A prisão, efetivamente, só cria maiores problemas. O sistema penal já chega atrasado. Só depois que aconteceu o fato é que se processa, condena e prende alguém, ou seja, não impede que os crimes aconteçam. Mandar alguém para a prisão é fazer com que a pessoa se torne mais desadaptada ao convívio social. 
 
- O último lugar para se ressocializar alguém é na prisão.
 
- É uma maluquice falar em ressocialização tirando a pessoa da sociedade, é absolutamente irracional ensinar a pessoa a conviver em sociedade, afastando-o dessa mesma sociedade.   
 
- A senhora acredita em alguma situação que realmente não teria outra alternativa a não ser o encarceramento? 
 
- Não. O pior crime que pode existir é o homicídio, o resto tudo se resolve. Se tirou a vida, não tem mais jeito. Para mim é o crime mais grave. No entanto, a gente convive com vários homicidas sem grandes problemas. Não são todos os homicídios que são apurados e que seus autores são identificados, processados e condenados. Os autores estão aí e podem estar perfeitamente adaptados. E mais que isso, a gente convive com vários homicidas. Basta ver na história do Brasil, na questão da ditadura, em que várias pessoas foram mortas. Eu sou absolutamente contra punir agora os torturadores. 
 
- Como se tratariam esses casos? Por exemplo, um homicida com comprovada autoria. Ele vai a julgamento...
 
- Pode-se resolver no cível, desde que a família da vítima queira, com uma reparação de danos, uma compensação, se o autor puder pagar. Ou o próprio Estado poderia assumir esse custo.
 
- A senhora está propondo a troca de uma pena de reclusão por uma reparação material. As vidas perdidas seriam quantificadas?
 
- Hoje em dia já é quantificado. É uma ajuda à família da vítima. Por exemplo, se for um pai de família é fundamental que se ajude essa família que perdeu aquela pessoa que sustentava. Há uma questão material, sim. Acho que se o autor do homicídio não for identificado ou não puder sustentar, o Estado deveria assumir isso. E o Estado também deveria assumir uma ajuda psicológica à família da vítima. 
 
- E como se faz para que o autor cumpra essa pena, da reparação?
 
- No cível, penhora bens, se ele tiver. Se não tiver bens, o Estado pode assumir.
 
- Na sua proposta, em nenhuma hipótese, esgotando todas as alternativas, o criminoso iria para a prisão?
 
- Não. Não adianta nada a prisão, você já perdeu o seu ente querido, do que adianta você causar sofrimento para outra pessoa? Porque a ideia da pena é causar sofrimento, isso não anula a dor de quem sofreu essa perda.
 
- E quando o autor é psicopata?
 
- Temos que tentar um tratamento de saúde.
 
- De acordo com a sua proposta, a sociedade teria que conviver, por exemplo, com homicidas?
 
- É o que eu sempre falo, a gente convive com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que é um assassino. Não só matou o [Osama] Bin Laden, como tem matado com os drones [veículo aéreo remotamente pilotado, não tripulado, idealizado para fins militares e que é responsável por ataques aéreos em áreas de conflito], tem matado uma série de pessoas. No entanto, a gente convive perfeitamente. Eu votaria nele se fosse americana e fiquei muito contente com a reeleição dele, mas que ele é um homicida, é.
 
- Como a própria polícia acaba matando, muitas vezes e em circunstâncias nebulosas, e às vezes a sociedade até estimula. 
 
- Não é o policial. Ele age estimulado pela sociedade, inclusive quando mata. E ele é aplaudido. A sociedade discrimina certas pessoas como se elas não fossem pessoas. A imprensa mesmo noticia que “mataram 10 traficantes e duas pessoas”. E é autorizado, quer dizer, “mataram 10 traficantes”, tudo bem. Agora se fosse 10 pessoas “respeitáveis”, aí é homicídio, tem de punir, condenar.
 
- Quando a senhora usa o termo abolicionismo, quer dizer exatamente o quê? 
 
- Acabar com o sistema penal.
 
- A senhora acompanhou os dados do último Mapa da Violência, que atesta que a violência tem cor, e Vitória é a terceira Capital do País em homicídios de negros? Quando publicamos a matéria, alguns leitores disseram que estávamos estimulando o racismo, defendendo que a matança de negros não tinha a ver com a cor, mas sim com a questão socioeconômica. O que a senhora acha disso, a violência tem cor?
 
- Acho que o Brasil tem uma política racista não assumida e efetivamente a vulnerabilidade do negro é muito maior, para ser revistado na rua, por exemplo. Não é à toa, porque existem mais negros pobres? É uma herança da escravidão, da discriminação. Agora, essa ideia da abolição [penal] vem da Europa, dos países nórdicos, não é exatamente relacionado com isso, mas tem tudo a ver com a abolição da escravidão. A luta pela abolição do sistema penal também é uma luta contra a desigualdade, contra a opressão, uma luta pela liberdade, tem uma proximidade muito grande com a luta contra a escravidão. 
 
- E a questão das drogas, que também é uma polêmica que a senhora aborda? Muitas vezes - inclusive este era o discurso do ex-secretário de Segurança Rodney Miranda no último governo - para eximir-se da culpa, o discuso é que a sociedade precisa se mobilizar, jogando todo o problema da criminalidade e da violência nas drogas, abstendo o Estado de qualquer responsabilidade sobre isso. 
 
- Na realidade a responsabilidade é toda do Estado, porque a violência só acontece porque as drogas são proibidas.
 
- Então a senhora é a favor da legalização?
 
- Se legalizasse, a violência que existe em torno da droga acabaria.
 
- Pelo menos na produção e na comercialização...
 
- Com certeza acaba. Não se tem violência na produção e comércio de álcool, mas já teve nos Estados Unidos quando era proibido, entre 1920 e 1933. Teve o Al Capone, os gangsteres, tiros nas ruas, aquela coisa toda. E quando foi legalizado, essa violência acabou, o Al Capone acabou. Hoje não tem violência na fábrica de cerveja e na venda de qualquer tipo de álcool. É uma coisa óbvia, basta raciocinar: qual é a diferença entre a produção e o comércio de álcool e a produção e o comércio de maconha ou de cocaína? Uma é legal e a outra é ilegal. Uma não tem violência e a outra tem.
 
- Vejamos o exemplo dos usuários de crack. Dificilmente se vê essas pessoas envolvidas em casos de violência extrema. Normalmente elas não estão armadas, são pessoas que estão em uma situação lamentável, desprovidas de tudo. Esses dependentes parecem oferecer um risco maior a eles mesmos.
 
- Em relação a essas pessoas, a droga é o menor dos problemas. O problema maior é a miséria, o abandono e a droga acaba sendo mais uma consequência, a causadora disso. Evidentemente sendo ilegal, [os traficantes] têm de se armar para garantir o negócio. Assim como não tem como resolver os conflitos legalmente, não tem como recorrer ao Judiciário ou a outros órgãos. Um exemplo que sempre dou também é que há pouco tempo, quando a Ambev foi criada, a Kaiser, do grupo Coca-Cola, foi ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) questionar o que parecia se tornar um monopólio. Na produção e no comércio de cocaína e de maconha, ninguém vai ao Cade, vai disputar o mercado na base da violência. 
 
-Até que ponto a senhora defende os 100% de desencarceramento? Por exemplo, como vai se resolver o conflito do chefe do tráfico se não encarcerá-lo. Ele vai continuar convivendo em sociedade?
 
- Se legalizasse [as drogas] acabaria o tráfico. Acho que esse é o primeiro passo, já que hoje a maior fonte de encarceramento, a maior fonte de violência, de morte, de opressão é a proibição. Então, o primeiro passo é legalizar a produção, o comércio, o consumo de todas as drogas. 
 
- Aí acabaria a figura do traficante. 
 
- Claro. As pessoas são fruto das circunstâncias, se o traficante não tiver mais como vender vai fazer outra coisa e o grande comerciante também. Não só o traficante da favela, o grande comerciante de droga – se é que existe – também vai procurar outra ocupação, isso o mercado resolve. O grande tem dinheiro para investir em outra coisa, o pequeno vai arrumar um emprego. O grande medo que as pessoas têm da legalização é também uma grande fantasia de que vai explodir o consumo, todo mundo vai usar, o que não tem nada a ver. Pode partir até de um exame de consciência de cada um para ver que não vai sair cheirando cocaína só porque foi legalizado. As pessoas têm as suas drogas de preferência, é raro quem não use alguma droga, ao menos cafeína a maioria usa, legal ou ilegal, já têm hoje e vão continuar tendo. Além disso, há várias indicações de que não altera o fato de ser legal ou ilegal. A proibição do álcool nos Estados Unidos não mudou muita coisa no consumo. Antes, durante e depois, o consumo se manteve basicamente o mesmo. Existe uma pesquisa nos Estados Unidos do [instituto] Zogby, que é o correspondente ao Ibope, feita três ou quatro anos atrás, e perguntava se fosse legalizado, o entrevistado passaria a usar cocaína ou heroína, e 99% das pessoas disseram que não. Embora todos os países sejam proibicionistas, existem uns mais e outros menos rigorosos, então se pegarmos o exemplo da Holanda, que é um pouco mais liberal e tolera o consumo de maconha e haxixe nos coffee shops, e pegarmos os Estados Unidos, que são mais proibitivos, a proporção de jovens que usam drogas na Holanda é muito menor do que a proporção de jovens que usam nos Estados Unidos. 
 
- Com o surgimento dessas novas prisões high tech, como as construídas no Espírito Santo, com poucos funcionários, em que não há contato com o preso, tudo é feito através de câmeras e de controles, o governo diz e a sociedade acredita que o sistema prisional está se modernizando, em plena evolução. Mas sabemos que esse modelo de prisão copiado do Estados Unidos não ressocializa ninguém. É apenas um caixão social mais moderno.
 
- Como é que sai essa pessoa dessa prisão, o que ela está aprendendo? A pessoa sai muito mais desadaptada do convívio em sociedade. Várias dessas pessoas vão ser absolvidas, ou vão cumprir penas alternativas. Além do mais é ilegal, segundo a lei. Na Constituição Federal e em declarações internacionais de direitos, a prisão provisória teria de ser algo excepcional. Quando se tem o Brasil com 40% [de presos provisórios], não se pode falar de excepcionalidade. O Estado descumpre a lei, então como pode exigir que as pessoas cumpram a lei? A própria Lei de Execuções Penais fala que o preso tem de ficar em uma cela de nove metros quadrados, é brincadeira?!
 
- Qual é a sua opinião sobre a redução da maioridade penal?
 
- Primeiro, é uma discussão que não deveria existir. A Constituição garante que a maioridade penal é aos 18 anos, é cláusula pétrea e elas não estão presentes só no artigo 5°, essa é uma cláusula garantidora de direitos individuais, então não deveria nem ser admitida a discussão – infelizmente a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) [do Senado] acabou de admitir. A falta de compromisso dos legisladores e também de muitos juízes com a Constituição é, lamentavelmente, muito alta. Além disso, é ainda mais cruel querer jogar adolescentes dentro desse sistema penitenciário. O adolescente é ainda mais vulnerável e todos esses danos que são produzidos pelo encarceramento num adolescente vão ser mais graves.
 
- O encarceramento juvenil é tão ruim quanto o adulto.
 
- Na verdade, já existe o encarceramento juvenil. Essa medida socioeducativa é um eufemismo para prisão. Esses estabelecimentos juvenis são verdadeiras prisões, então não vai mudar nada nessa fantasia de que mudaria alguma coisa [se fossem para o sistema prisional], já que os adolescentes já são encarcerados. O que seria ainda mais grave – ao menos os adolescentes são encarcerados por, no máximo, três anos – é que se reduzir a maioridade penal, poderá ser gerado muito mais danos.
 
- Se um adolescente de 17 anos e 11 meses cometesse um homicídio hoje, ficaria até os 21 anos, no máximo, encarcerado. Provavelmente não iria se ressocializar nesse período, se tornando um forte candidato a ocupar uma vaga no sistema prisional. Parece que o problema não tem a ver com a idade. Isso mostra que o processo de ressocialização está falido de ponta a ponta, não é verdade?
 
- O que já é um estrago considerável. Muitos dos presos adultos hoje, não só no Brasil, passaram pelo sistema juvenil, o que mostra que o encarceramento não funciona, só alimenta a violência. Eu sempre costumo falar que essa opção pela prisão é uma coisa sadomasoquista, o sadismo parece evidente, a questão masoquista é porque, na verdade, com o encarceramento, a sociedade está sendo prejudicada porque cria pessoas mais desadaptadas, não só porque é difícil a pessoa sair da prisão, ou de um desses estabelecimentos juvenis, e conseguir emprego, ser aceita – a pessoa já sai marcada, com a etiqueta de “criminoso”. Além disso, ela mesma já interioriza esse papel, passa a acreditar que é uma criminosa, marginal e vai passar a viver de acordo com essa visão que tem, sai revoltada. Então, a sociedade está criando mais “criminosos”. 
 
- Até porque para esses jovens esse tipo de estabelecimento é o único local em que se sentem identificados e acolhidos. 
 
- É porque ele é desrespeitado o tempo todo. Mas o jovem, se tiver oportunidade, é mais fácil de adaptar que o adulto. Então, jogar este jovem no meio dos adultos vai ser muito pior. Estes estabelecimentos juvenis já tiram 90% das chances [de ressocialização], numa penitenciária junto com adultos vai tirar completamente. 
 
- Cada vez mais aparecem ideias mirabolantes, que tentam provar que existe, sim, possibilidade de ressocialização atrás desses muros e que é possível mudar a realidade desses pessoas...
 
- É impossível. Existe um professor de direito penal argentino [Eugenio Raúl Zaffaroni] que fala que pretender ressocializar alguém colocando na prisão, é a mesma coisa que ensinar alguém a jogar futebol dentro de um elevador, não tem cabimento.
 
- Sua ideia de desencarceramento tem inspiração no movimento antimanicomial? 
 
- É a mesma coisa, o manicômio e a prisão têm uma origem comum. Nasceram juntos no século XVIII e a ideia é a mesma. 

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