Quinta, 28 Março 2024

Reportagem especialOnde os fracos não têm vez

Reportagem especialOnde os fracos não têm vez

Texto: Henrique Alves

Fotos: Gustavo Louzada/Agência Porã
 
Cadeirante. Vive deitado. Homem, 62 anos, mineiro. Ex-supervisor de produção da Companhia Ferro e Aço de Vitória (Cofavi). Pé esquerdo inchadíssimo. Seis remédios por dia, dois a três litros d’água por dia. Auxílio para andar e assear-se. Diabético, cardíaco, pressão alta, remédio para dormir (sem movimento, logo sem sono). Três filhos e dois netos. Aos 42, um derrame. Aposentado por invalidez.   
 
Uma espécie de Barbie humana era a atração do Programa da Tarde na TV Record na tarde de quarta-feira (3). Toneladas de maquiagem e uns apliques capilares depois, uma menina esguia e de tez alabastrina virava uma bonequinha. Ana Hickmann, Ticiane Pinheiro e Britto Jr., apresentadores do vespertino, pareciam encantados. A Barbie do Terceiro Mundo causava impressão nas ruas de São Paulo. 
 


José Maria Santos é um dos telespectadores dessa exótica amostra da fauna nacional. Está afundado num sofá de dois lugares que mal lhe acolhe as carnes. Na face oposta da sala, o outro sofá; à frente, um balcão pejado de porta-retratos; acima, a Sony de 40 polegadas presa à parede. O ambiente é penumbrento: a luz da tarde côa-se pelas janelas fechadas e apenas se insinua pela porta entreaberta. A tarde é modorrentamente pacata. 
 
Há quase dois anos Zé Maria, como é conhecido, enfrenta o silêncio modorrento das tardes de Jardim América aprisionado ao sofá e à TV. Na exígua sala, tudo é silêncio e inércia, violados apenas pelo som do televisor e pelo ruído do ventilador. 
 
Como ele diz, “um desgraçado de um churros com bastante doce de leite” deflagrou a crise de diabetes. À mesa da sala de jantar, bateu-lhe uma tremedeira medonha. Três leitos de hospital depois, voltou para casa. Já não andava. O lado esquerdo do corpo praticamente inutilizara-se. A diabetes intumesceu terrivelmente sua canhota.
 
Hoje seu itinerário é ir do quarto para o sofá e deste para o quarto. Só. Preocupa-o a Copa do Mundo de 2014. Quando se lembra da última, lembra que andava naturalmente. Não gostaria de ver a seleção afogado num sofá ou numa cadeira de rodas.
 
Não bastasse a diabetes, a pressão, o coração, o derrame, o sofá e a TV, Zé Maria carrega uma cruz que a qualquer instante parece que vai esmagá-lo contra o sofá, a ele e a outros 145 seres humanos da mesma faixa etária. Essa enorme e pesada cruz chama-se Fundação Cosipa de Seguridade Social (Femco).
 
A história é absurdamente simples e simplesmente absurda. Fundada em agosto de 1975, a Femco é uma entidade de previdência privada que segurava empregados da antiga Cofavi e da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista, cuja sede é em Santos, São Paulo). Não poucos empregados da extinta siderúrgica de Cariacica se aposentaram pela Femco.
 
Em 1996, a Cofavi decretou falência, num processo que iniciara-se em 1988. E alguns anos após a falência, a Femco resolveu suspender o pagamento a aposentados e pensionistas. O drama se arrasta há quase duas décadas - ou mais, dependendo do caso. 
 
Talvez dentro de cada um haja o travo de dinheiro jogado fora. Talvez. Mas esses homens e mulheres cruzaram a vida superando adversidades. Ergueram casa, família e, por que não?, todo um bairro - Jardim América deve muito à Cofavi. A história de Zé Maria mostra como a tormenta é furiosa, mas não intimida. 
 
Mineiro de Mutum, dedicou-se 20 anos à Cofavi. Labutava sob um ruído ensurdecedor, uma poeira abjeta e um calor inclemente, supervisionando cerca de 400 trabalhadores. Aos 42, o derrame o condenou à aposentadoria por invalidez. 
 
A sorte dele foi, durante os bons tempos de Cofavi, ter comprado a bela, ampla e arejada casa de três quartos em que hoje mora com a esposa, Irani, e um dos filhos.
 
Zé Maria nunca viu cor, odor ou textura do dinheiro da Femco. A aposentadoria que recebe do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) compromete-se com remédios e contas. 
 
O que mais espera da vida é uma cadeira de rodas motorizada, que lhe devolveria a liberdade ou, pelo menos, diminuiria a dependência que esse homem - outrora forte, ativo e inteiriço, como registram as fotos sobre o balcão - tem da boa vontade alheia. Se o dinheiro que fez por duas décadas ininterruptas sob barulho, poluição e calor voltasse, a moderna cadeira seria uma realidade. Assim como a contratação de uma cuidadora.
 
As sequelas do derrame e da diabetes afetaram-lhe a fala. Como apenas o lado direito da boca se move, as palavras saem com dificuldade, num tom quase pastoso; às vezes, um balbucio ininteligível é inevitável. E pelo modo que se dirige ao interlocutor, evitando-o, virando a cabeça, olhando para os lados, seus anseios como que viram um sonho distante, inexoravelmente distante. Mais fácil ser uma Barbie humana.
 


As histórias de Jardim América e da Cofavi se confundem. Fundada em 1942, a Cofavi nasceu dois anos após a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN, em Volta Redonda, Rio de Janeiro), num contexto de constituição de uma base para a industrialização pesada no Brasil. Jardim América desenvolveu-se no encalço da companhia.
 
Quando se está na companhia de Décio Antônio Daros, bairro e empresa se confundem ainda mais. Em 10 minutos de errância, topamos com quatro cofavianos, também órfãos da Femco. Um vivaz senhor de 72 anos, Décio não anda dez metros sem cumprimentar alguém: um bom dia aqui, um oi ali, um boa tarde acolá. Cofaviano ou não, ele conhece boa parte de Jardim América.
 
Presidente da Associação dos Funcionários e Aposentados da Antiga Cofavi, Décio também também levou a rasteira. Natural de João Neiva, filho de uma professora com um pedreiro, aos 18 anos foi trabalhar na Acesita, em Coronel Fabriciano (MG). Em 62, a Cofavi abriu vaga para torneiro mecânico. Décio fez o teste e passou. Só saiu 33 anos depois, aposentado.
 
A Femco pagou sua aposentadoria direitinho durante seis anos. “Porém, quando a Ferro e Aço foi à falência, a Femco foi e ‘nheco’!”, diz. Um telegrama avisou-lhe que o pagamento fora suspenso até a segunda ordem. “Agora eu pergunto a você: eu tinha alguma coisa a ver com briga de Ferro e Aço com a Femco? Eu Não. Eu paguei a minha parte”, contesta. 
 


A justificativa da Femco para a suspensão dos pagamentos é, pelo menos, pouco convincente. A entidade condicionou os pagamentos à quitação, via Massa Falida da Cofavi, de débitos desta com ela. Há ainda o argumento de que haveria dois fundos de previdência separados: o da Cofavi e o da Cosipa e que os recursos teriam acabado no da Cofavi.
 
A Justiça rechaçou esses argumentos. Os aposentados já contribuíram para o Fundo. Logo, dívidas de terceiros não podem comprometer os pagamentos da Femco. O Ministério da Previdência também reconheceu as obrigações da Femco com os aposentados. 
 
A Femco foi adquirida pela Previdência Usiminas, o que a elevou à qualidade de uma das mais abastadas entidades do Brasil. Ainda assim, há a resistência em reparar aposentados e suas pensionistas.
 
Hoje, cerca de 500 famílias estão enredadas no problema. Como são inúmeros processos individuais ou coletivos, as causas rastejam na Justiça Estadual. Todas dependem do julgamento de um “recurso repetitivo” que está no Superior Tribunal de Justiça (STJ), com o ministro Raul Araújo. 
 
Ainda assim, enquanto o STJ não se pronuncia, os trabalhadores podem sacar, pela lei, 60 salários-mínimos. Mas aí entram as manobras jurídicas da Femco e a demora da justiça, que impedem esse desafogo legal.
 
Uma vida inteira de labuta não seria facilmente trocada pelo ócio, ainda que justo, da aposentadoria, razão pela qual o recém-aposentado Alairto Joaquim Graciotte tratou de arrumar outra ocupação: porteiro do turno matutino do tradicional Clube Libanês, na Praia da Costa, Vila Velha. Aos 49 anos, tinha acabado de marcar um ponto final em 22 anos como encarregado de inspeção da Cofavi.  
 
Uma dor no peito e nas costas que sentiu durante o trabalho redundaram em três pontes de safena e uma mamária. De tão pálido, foi dispensado. Alairto dirigiu seu fusquinha da Praia da Costa até Jardim América em profundo mal-estar. 
 
Entrou em casa tropegamente, pedindo socorro, nem desligou o carro. As pontas dos dedos, inteiramente arroxeadas. O genro levou o sogro infartado ao hospital. Hoje, sim, aos 71 anos, está parado. Cumpre à risca a proibição médica de evitar peso.
 
Alairto nasceu em Fundão e aos 17 anos foi para Vitória servir o Exército. Depois, Coronel Fabriciano e 10 anos na Acesita, onde se tornou metalúrgico. De férias em Vitória, a Cofavi ofereceu-lhe emprego e o dobro do salário. Veio. Até hoje mora em Jardim América. Casado, tem quatro filhas e seis netos.
 
A Femco? Mesma história. Todo santo mês a mensalidade era descontada no talão de cheque. Mas anos e anos de contribuição degeneraram-se em apenas 24 meses de complementação de aposentadoria. Cardíaco, Alairto toma 10 remédios por dia.
 
Thelma Vazzoler perdeu o marido em 21 de julho de 2012 em frente à Rodoviária de Vitória. Hoje mora com os filhos - duas mulheres e um homem - numa casa de dois pavimentos comprada pelo companheiro em Vasco da Gama (bairro ao lado de Jardim América, também em Cariacica).
 
Apesar dos 1,72 de altura, Admir Vazzoler era goleiro. E apesar de ser goleiro, o futebol o levou à Cofavi. Natural de Vargem Alta, Admir era jogador profissional. Nos anos 60, mudou-se para Vitória para defender o clube homônimo. Depois passou pelo Clube Atlético de Vila Velha, Desportiva e Castelo. A Cofavi tinha um time e se interessou pelo goleiro. Admir foi contratado e ainda ganhou um emprego na empresa.
 
Como já era casado, preferiu ficar com o emprego - o salário era melhor e o dispensava das viagens e competições. Admir trabalhou 35 anos na Cofavi. Foi operador de ponte e encarregado de produção. Após 25 anos, aposentou-se por insalubridade, mas, ainda assim, continuou por mais uma década.
 
A contribuição para a Femco só se fez valer por dois meses após a aposentadoria. Depois foram anos em branco. Há dez anos, com um grupo de ex-funcionários, recebeu uma quantia, com que reformou a casa. E só. Admir é apenas mais um dos aposentados que, digamos, sucumbiram à Femco. Dos 146, cerca de 20 perderam a batalha.
 
Um agravante: Thelma não sai de casa sozinha. Uma crise de depressão deixou sequelas. Às vezes, é acometida por uma vertigem que lhe afeta seriamente os movimentos. A pensão da Femco aliviaria um peso. 
 
O exame de ressonância magnética que faz de três em três meses custa-lhe amargos R$ 700 reais. Ela também faz ultrassonografia. Mas a pensão que existe (INSS) dá apenas para a comida da casa. Remédios, exames e contas, os filhos ajudam.
 
Na manhã de 20 de julho, Admir despertou com uma aguda dor lombar. Achou que era a coluna. Após exame, a filha, fisioterapeuta, achou que não. Admir foi levado à Clínica dos Acidentados, em Vitória, onde o diagnóstico foi o mesmo: nada de coluna.
 
Como a dor insistia, foram para o Hospital São Lucas. Sem um técnico para operar o aparelho de ultrassom, ficaram até as duas da manhã. Admir voltou a se sentir bem, a dor tinha cedido. 
 
Mas quando se levantou para ir para casa, ela reapareceu e ele só saiu do São Lucas às 8h. O médico deu alta e uma recomendação: que procurasse o Hospital Evangélico. O problema era o coração, cujo histórico registrava então três infartos. Foram embora.
 
Exausto, Admir chegou em casa, tomou banho, jejuou e dormiu. À hora do almoço, Thelma o acordou. Quer almoçar? Mas ele pediu apenas um copo de leite - Thelma diz que todos os dias ele tomava um álgido copão de leite. Tomou e voltou a deitar. Mal ajeitou o corpo na cama, veio a dor. “Me leva para o Evangélico”. 
 


“Nós fomos. Mas, nisso, ele começou a falar que não voltava mais, começou a querer dar número de conta, onde tinha dinheiro, o que tinha que pagar, sabe? E a gente falando para ele ficar quieto e ele suando muito e falando ‘Não, presta atenção...’, e o menino [o filho] começou a chorar...”. 
 
A outra filha chegou mais tarde. Os quatro entraram no carro e seguiram para o Evangélico, os filhos nos bancos da frente, Thelma e Admir atrás. Enquanto isso, a fisioterapeuta tentava arrumar uma equipe médica para atender o pai no Hospital da Polícia Militar (HPM).
 
Não foram atendidos no Evangélico. Mas um telefonema do HPM informou que já havia uma equipe médica à espera de Admir. 
 
Quando passavam em frente à Rodoviária, Thelma sentiu desfalecer a mão pousada sobre sua perna; o corpo pendeu pesada e lentamente até a cabeça descansar no ombro da mulher. “Ele não teve nada. Foi olhando para os meninos que estavam na frente, aquele olhar assim, né... Aí eu falei para os meninos: seu pai faleceu”.  
 
No HPM, médicos tentaram reanimá-lo. Em vão. A veia aorta da região lombar se rompera. Admir Vazzoler tinha 68 anos.
 
Uma novidade pouco alentadora saiu essa semana. O ministro Raul Araújo negou a liberação para os aposentados dos R$ 31,5 milhões bloqueados à disposição da 10° Vara Cível de Vitória. Mas o juiz Marcelo Pimentel, da 10° Vara, liberou o dinheiro para a Femco, que poderá agora dispor dele como bem entender.

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Sexta, 29 Março 2024

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