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‘É um crime explícito!’

Fotos: Fase/ES

Coordenador regional da Federação dos Órgãos para a Assistência Social e Educacional (Fase), o sociólogo Marcelo Calazans relata, nesta entrevista, os principais aspectos levantados pela última Expedição feita no Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, entre Conceição da Barra e São Mateus, no norte do Estado.

A ação aconteceu tendo em vista a semana de mobilização pelo Dia Internacional de Luta Contra os Monocultivos de Árvores, 21 de setembro, sob o lema “Monocultivo de eucaliptos não é floresta”. A data é lembrada em vários países do mundo e, no Brasil, é puxada pela Rede Latinoamericana contra os monocultivos de árvores (Recoma).

A equipe da expedição, multidisciplinar, foi formada por geógrafos, jornalistas, agrônomos, sociólogos, antropólogos, técnicos agrícolas, além dos próprios guias locais, pescadores e quilombolas, e percorreu a bacia do Rio São Domingos, no final de julho, produzindo fotografias, vídeos, textos e outros materiais sobre os impactos dos eucaliptais da Aracruz Celulose (Fibria) sobre os recursos hídricos da região.

“Além de secar nascentes, córregos, lagoas e rios, há o problema da contaminação por agrotóxicos. E o sistema municipal de saúde de Conceição da Barra não tem condições de monitorar os resíduos de agrotóxicos. É muito vulnerável, tanto o sistema de saúde quanto o de tratamento de água”, assombra-se.

Um dos textos produzidos pela expedição, do geógrafo Luciano Cajaíba, informa que o Córrego São Domingos – Integrante da bacia do Rio Cricaré e que abriga as comunidades quilombolas de Linharinho, São Domingos de Itauninhas, Cacimba, São Domingos e Santaninha – tem ao todo 254 quilômetros, onde 86 nascentes deveriam abastecê-lo.

No entanto, 48 nascentes estão diretamente impactadas em sua Área de Proteção Permanente (APP) com a monocultura do eucalipto, havendo ainda 198,95 hectares de APP de curso hídrico também com ocupação de eucalipto e 18 captações irregulares de água na bacia sem a devida solicitação de outorga.

As informações foram levantadas tendo por base dados do uso e ocupação do solo resultado do aerolevantamento 2012 a 2014 produzido para o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema).

Documentadas, as evidências dos crimes foram levadas a diversos órgãos estaduais e municipais, para que sejam tomadas as providências cabíveis. “Como todos esses órgãos licenciaram, mapearam e processaram pescadores e quilombolas, mas não conseguiram enxergar um crime explícito? É difícil de entender”, ironiza.

O selo internacional FSC também está sendo denunciado, informa Marcelo. Pela primeira vez, com foco na água e não só no aspecto social e de direitos humanos. “O FSC tem enganado os consumidores europeus, não garante que essa empresa protege a água e os povos tradicionais, pelo contrário”, afirma.

O ponto central das denúncias, afirma, é exigir o recuo dos eucaliptais nas áreas de mata ciliar e a regularização dos territórios tradicionais dos quilombolas e pescadores artesanais. “Mesmo os territórios ainda não demarcados, são de povos tradicionais já reconhecidos, pois eles têm títulos, da Fundação Cultural Palmares, e outros que garantem essa condição de povos tradicionais. O MPF tem que intervir em defesa a esses povos e mostrar como a empresa é criminosa. É incrível a empresa processar as comunidades como destruidoras da mata”, indigna-se.

Confira a seguir a entrevista na íntegra:

O que foi possível constatar nessa expedição pelo Rio São Domingos? A Aracruz Celulose (Fibria/Suzano) continua praticando crimes ambientais?

É um crime explícito. Desde a aprovação do Novo Código Florestal, há quase dois anos, que todas essas empresas estão criminosas, e há muitos anos, considerando que o anterior estava em vigência desde 1965. E ainda estão. Quando o Novo Código foi aprovado, tentando livrar as empresas desse passivo, elas passaram a correr atrás pra se adequar.

Os mapas provam explicitamente como as empresas não respeitam lagoas, matas ciliares, nascentes. E não tem nenhuma política pra isso. No site diz que está recuperando algo em torno de quatro nascentes. Quantos São Domingos tinham no Sapê do Norte? Dezenas e dezenas de São Domingos e outros pequenos rios que desaguavam no São Domingos. É um dado de GPS, localizado no mapa, fotografado, narrado por pessoas que lá estiveram antes do eucalipto, prova contundente do crime ambiental da empresa. E ela permanece criminosa, mas alega que quem cometeu os crimes foi a velha Aracruz Celulose, nos anos 1960. Acontece que, quando ela volta na área e planta novamente o eucalipto, nos mesmos talhões, já como Fibria/Suzano, ela pratica o crime novamente. Ela hoje aposta no eucalipto como mata ciliar!

Mais especificamente com relação à água, quais são os impactos provocados pela monocultura de eucaliptos na bacia do São Domingos?

Além de secar nascentes, córregos, lagoas e rios, há o problema da contaminação por agrotóxicos. E o sistema municipal de saúde de Conceição da Barra não tem condições de monitorar os resíduos de agrotóxicos. É muito vulnerável, tanto o sistema de saúde quanto o de tratamento de água.

Encontramos dezenas de embalagens de agrotóxicos pelos caminhos. Não há recolhimento dessas embalagens, nem destinação correta. E não há garantia de monitoramento da água, que abastece a cidade, então é um problema sério que vai para além das comunidades quilombolas, afetando também os moradores da zona urbana.

Quais órgãos públicos receberam as denúncias produzidas durante a Expedição?

Ministérios Público Estadual e Federal, secretarias municipais de Educação, de Cultura e de Meio Ambiente, a Comissão Municipal de Saúde e a Câmara de Vereadores. É uma denúncia contra a Fibria pela destruição do São Domingos, em cinco áreas explicitamente impactadas com crimes socioambientais. Recolhemos várias evidências, provas explícitas, pontos em GPS, entrevistas, fotografias, vídeos … um conjunto comprobatório bem sólido, produzido por geógrafos, agrônomos, sociólogos, antropólogos, técnicos agrícolas, além dos próprios guias locais, pescadores e quilombolas.

No Ministério Público Estadual pedimos que investigue o Idaf [Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal], o Iema [Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos] e o Incaper [Instituto Capixaba de Pesquisa e Extensão Rural] – órgãos que licenciam eucalipto ou prestam algum tipo de assessoria técnica. É da competência do MPES monitorar a denúncia junto a esses órgãos. Como pode o Iema, o Idaf, a Polícia Ambiental … todos esses órgãos, até hoje, não verem essas mais de 80 nascentes impactadas pelo eucalipto? Está na boca do povo desde a década de 1990. Não é novidade, o que a denúncia faz é comprovar isso milimetricamente. Como todos esses órgãos licenciaram, mapearam e processaram pescadores e quilombolas, mas não conseguiram enxergar um crime explícito? É difícil de entender.

No MPF tratamos dos crimes contra os povos tradicionais e os processos de reintegração de posse movidos contra eles. Para além da legislação de São Mateus e capixaba, existe uma legislação nacional e internacional. O juiz, na hora de decidir sobre a reintegração de posse, vai ter de pensar nesses quatro planos legislativos. Mesmo os territórios ainda não demarcados, são de povos tradicionais já reconhecidos, pois eles têm títulos, da Fundação Cultural Palmares, e outros que garantem essa condição de povos tradicionais. O MPF tem que intervir em defesa a esses povos e mostrar como a empresa é criminosa. É incrível a empresa processar as comunidades como destruidoras da mata.

E também estamos denunciando o selo internacional FSC, pela primeira vez com foco na água e não só no aspecto social e de direitos humanos. O FSC tem enganado os consumidores europeus, não garante que essa empresa protege a água e os povos tradicionais, pelo contrário.

Qual é a reivindicação central das denúncias?

Que ela retire seus eucaliptos. Exigimos um recuo imediato do eucalipto nas matas ciliares e a recomposição com mata nativa. E exigimos proteção aos territórios tradicionais de quilombolas e pescadores.

Nas áreas de quilombolas, vemos as matas ciliares preservadas, o pouco que a empresa deixou de pé e que os quilombolas estão recuperando. Tem mata ciliar, tem agroflorestal. Mas onde não tem quilombo nem pescadores tradicionais, não tem mata ciliar. Para proteger a água, é preciso proteger os territórios tradicionais deles, regularizar os territórios. Eles são os guardiães da Mata Atlântica e da água.

O eucalipto não pode mais se expandir e precisar recuar das matas ciliares. Exigimos punição contra esse mega passivo ambiental da Fibria, a aplicação de multas que sejam revertidas pra proteção dos São Domingos e das comunidades tradicionais.

Como a Aracruz Celulose (Fibria) tem conseguido interferir a ponto de fazer com que, até hoje, o Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte não tenha sido titularizado?

No início desse ano, o STF [Supremo Tribunal Federal] reconheceu a constitucionalidade do Decreto nº 4887/2003 [que regulamenta a titularização dos territórios quilombolas em todo o país, e havia sido questionado pelo Partido Democratas em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) impetrada em 2012].

Antes dessa decisão, havia um pacto, ainda que não explícito por parte da empresa, de esperar ter isso como horizonte. No diálogo com as comunidades, ela dizia que as terras estavam em litígio e que iria esperar o STF. E enquanto isso, foi fazendo os contratos de parcerias pelo PDRT [Programa de Desenvolvimento Rural e Territorial].

Como o Supremo de fato aprovou o Decreto, iniciou-se então uma nova pactuação e a empresa continua ganhando, porque mesmo com a constitucionalidade do Decreto, o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] não consegue fazer cumprir o seu papel, de fazer os relatórios de identificação das comunidades, de titular as comunidades. O Incra está totalmente desestruturado.

Então, por um lado, a empresa retarda ao máximo o trabalho do Incra, incitando por exemplo um quilombola a denunciar outras famílias. O Incra está falido, mal tem automóvel e técnicos pra ir aos territórios. Por outro lado, ela oferece o PDRT, às famílias já instaladas. E, pras famílias que chegaram mais recentemente, nos últimos dez anos, nas Retomadas, aí não tem diálogo nem parceria, são processos de reintegração de posse, é o trator passando por cima.

Quantas reintegrações de posse estão em curso atualmente no Território Quilombola?

Não sabemos ao certo, talvez já chegue a 15. Esperamos que o juiz de são Mateus consiga perceber que não se trata de uma reintegração de posse qualquer. Expedir a reintegração de posse não vai resolver o gigantesco conflito ali instalado. Se reintegrar, vai levar pra onde essas famílias? Que o juiz tenha uma leitura mais sociológica disso tudo.

Qual é o tamanho estimado da população que legalmente tem o direito de exigir a reforma agrária ou a sua reinserção no território quilombola?

No Sapê, o MST deve ter umas 500 a mil famílias sem terra. E pelo menos uma quatro a cinco mil famílias de quilombolas que saíram da terra nos últimos trinta, quarenta anos e estão nas periferias de Conceição da Barra, São Mateus e Braço do Rio. É uma população enorme de povos sem terra. E ao mesmo tempo, a empresa tem 68% das áreas de Conceição da Barra e a cana mais 10%. É um conflito de mega proporções. O que vai acontecer com essas famílias, caso a Justiça determine a reintegração de posse para a Fibria?

Sabe quantos empregos a empresa gera dentro de Conceição da Barra? Sessenta e dois! Existem duas mil a cinco mil pessoas ao redor de uma monocultura de dezenas de milhares de hectares, criminosa, e por outro lado, milhares de quilombolas, sem terra e pescadores que foram expulsos da terra nos últimos anos. E ela gera 62 empregos no município.

Em dez mil hectares caberia essa gente toda. Dez mil hectares dentro de uma área de mais de 100 mil hectares em posse da Fibria. É uma bomba social que poderia ser resolvida com um pequeno recuo dos eucaliptos. Não precisaria acabar com todo o eucaliptal de uma hora pra outra. Mas ela não recua um único passo.

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