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Em Pancas, pomeranos literalmente ‘tiram água de pedra’

A conservação da natureza é parte da identidade cultural dos pomeranos, seja na Europa, de onde são originários, seja no Brasil e em outros países para onde migraram, a partir de meados do século XIX, em busca de uma vida mais próspera e pacífica, longe das guerras que marcaram o período de unificação da Alemanha.

A verve conservacionista é uma das principais características que unem os vários povos tradicionais, como são classificados os pomeranos, ao lado de indígenas, quilombolas, camponeses e pescadores artesanais, só para citar os mais presentes na composição do diversificado tecido étnico-cultural do Espírito Santo. 

Nos territórios dos povos tradicionais, as florestas estão mais seguras, com índices semelhantes aos de unidades de conservação de proteção integral, como parques e reservas biológicas. Afora esses oásis defendidos pela força da lei e pelo amor dos povos tradicionais, o que se vê, via de regra, é caça, desmatamento, mineração. 

“Meu pai é quase um índio. Andando na mata, ele conhece tudo, qualquer biólogo fica de boca aberta. Graças a Deus temos uma experiência de vida aqui que poucos têm”, descreve, agradecido, o engenheiro agrônomo Marcos Patrick Stuhr, a quarta geração da família residindo em Pancas, no centro-oeste do Estado. 

Quatro anos de estudos 

Foi no início de 2013, logo que assumiu a função de extensionista no Instituto Capixaba de Pesquisa e Extensão Rural (Incaper), que o filho de S. Juliberto e D. Nair Stuhr, irmão de Patrícia e Fernanda Stuhr, passou a se dedicar a desenvolver uma tecnologia capaz de construir barragens que acumulassem água da chuva. Meses depois, teria início a maior crise hídrica da história do Espírito Santo, que se prolongaria até 2018. 

“Quem mora na cidade não tem dimensão do que foram aqueles cinco anos. Você andar na mata e ver os animais morrendo porque não tinha água pra beber. Não tinha água nenhuma na propriedade, não sabíamos o que fazer”, relata Marcos.

Foram quatro anos de estudos, cálculos, planilhas, trabalhos no escritório e em casa, à noite… até ver sua invenção funcionando na prática, na propriedade da família. A inauguração da invenção de Marcos aconteceu em novembro de 2017, ainda no auge da seca que devastava praticamente todos os municípios. 

O segredo, ressalta, é ter certeza que vai ser possível encher a estrutura que vai ser construída. “Pra não chegar pra um agricultor e dizer que tem que fazer dez metros de aterro e só conseguir encher um metro”, enfatiza o engenheiro.  

A primeira barragem da família tem capacidade para 28 milhões de litros de água e já está plenamente cheia. A segunda comporta mais de 50 milhões de litros. Os custos, de R$ 36 mil e R$ 84 mil, foram financiamentos pelo Banco do Nordeste, proporcionando à família prazo razoável para pagamento. 

Foto: Arquivo Pessoal

Os resultados conquistados surpreenderam até o inventor. Não só a pequena nascente intermitente – que secava anualmente, nas épocas de estiagem – se tornou permanente, como aumentou em 1.000% sua vazão. “Depois da barragem, o córrego Palmital continuou secando nas estiagens, mas ela não seca mais. É hoje a vertente principal de água da propriedade”, constata Marcos. 

A abundância de água gerou ainda um aumento de 170,71% na capacidade de suporte de cabeças de gado na propriedade, redução das mortes dos animais por doença em 83% e aumento de 292,86% na produção de leite, aumentando também o faturamento. Esse, fundamental para manter o trabalho de conservação iniciado pelos bisavós. Hoje, 64% da propriedade é de floresta nativa. Parte dela é primária, mantida intocada desde os pioneiros que ali chegaram. Outra parte foi restaurada pelos descendentes. 

“Na época do meu avô ele fazia da forma dele, não tinha estudo. Colocou a mata no nome de três filhos, porque se algum quisesse desmatar, os outros não iam permitir. Aos poucos, meu pai adquiriu as matas, algumas foram sendo reflorestadas. Onde tinha sido aberto pra plantio, mas que ele viu que não tinha necessidade, deixou a mata voltar. Hoje tem áreas que a gente nem diferencia mais se é primária ou secundária e a gente faz o enriquecimento dessas matas com espécies nativas que não existem ou existem em pequena quantidade”, conta a irmã de Marcos, a bióloga Patrícia Stuhr. 

Luta e luto

A formação em Biologia, aliás, é resultado da sua dedicação à luta conservacionista, intensificada em fevereiro de 2003, quando a família se viu diante de uma ameaça iminente de despejo pelo governo federal, após a criação de um parque nacional sobre as matas secularmente protegidas pelos Stuhr. 

Patrícia era farmacêutica, mas o envolvimento na luta acabou lhe despertando o desejo e a necessidade de conhecer melhor as leis ambientais. O parque havia sido criado em dezembro de 2002, no apagar das luzes da gestão de Fernando Henrique Cardoso, após um sobrevoo de helicóptero de técnicos do Ministério do Meio Ambiente. Sem consulta pública, sem estudo socioeconômico, os burocratas de Brasília ignoraram a existência dos guardiães da floresta, determinando a desapropriação das terras. 

Assim que descobriram a canetada, os Stuhr começaram a informar a comunidade pomerana sobre o que acontecia, iniciando uma grande mobilização, que atraiu ambientalistas e pesquisadores de todo o Estado e do país. 

No ano seguinte, ao se casar, Patrícia fez do íntimo e feliz evento mais um motivo para denunciar a ameaça de desapropriação, resgatando a antiga tradição pomerana dos vestidos pretos de casamento, com uma faixa verde na cintura. Na Pomerânia, as noivas eram desposadas pelo senhor feudal, antes mesmo do marido, sendo o preto um símbolo do luto da família com a injusta situação e o verde, a esperança de mudança.

“Aproveitando todo esse significado do vestido e da faixa, foi minha forma de protesto”, conta Patrícia. “Um protesto cultural em um dos dias mais significativo da vida de uma mulher”, ressalta. “Trouxe a dor da desapropriação e a força da luta que travávamos contra o parque nacional imposto à comunidade”, recorda. 

Foi somente em junho de 2008, que uma nova lei transformou o parque nacional no Monumento Natural (Mona) Pontões Capixabas. A nova categoria, segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), também é de proteção integral, mas não exige desapropriação de terras, objetivando preservar os atributos naturais e também culturais. “A lei entende que a forma de viver das pessoas está vinculada ao ambiente. Por isso não tira a autonomia dos proprietários rurais”, explica a bióloga. 

Mutum-do-sudeste

Foto: Arquivo Pessoal

Em 2012, Patrícia conseguiu formalizar mais uma iniciativa conservacionista na propriedade, inspirada nas histórias que ouvia do pai na infância sobre o misterioso e encantador mutum-do-sudeste – ave grande, meio desajeitada e ameaçada de extinção em nível nacional, com registros, no Estado, exclusivamente nas Reservas da Vale e de Sooretama, em Linhares, no litoral norte. 

Os Stuhr mantêm o único criador conservacionista da espécie em toda a região Sudeste. A função do criador conservacionista, explica, é proteger a espécie, reproduzi-las em cativeiro e, havendo uma quantidade mínima de indivíduos, reintroduzi-los na natureza, aumentando a área de ocorrência e a população. 

Patrícia trabalha de forma voluntária no criadouro, sendo acompanhada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que concedeu o registro e integrou o criador de Pancas na rede nacional, além do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema). 

O pai, que nunca tinha visto o mutum, mas sabia identificar o barulho e descrevia o bicho para os filhos com entusiasmo, hoje é o principal cuidador dos animais do criador. “Ele sabe identificar o comportamento de cada um aqui. Papai é um biólogo nato, muito observador. É incrível!”, orgulha-se Patrícia.  

A primeira reintrodução ainda não tem data para acontecer. E depende não só do desenvolvimento dos filhotes que nascem no criador, mas também de um trabalho de conscientização na região, para garantir que os mutuns não serão caçados e estarão protegidos nas matas locais. 

Verdadeira homenagem

Foto: Arquivo Pessoal

Também aguardada pela família é a multiplicação dos benefícios da tecnologia criada por Marcos. A homenagem oficial aconteceu em novembro passado, em solenidade em Vitória, com autoridades do Palácio Anchieta, por meio do projeto HorizontES em Extensão, que selecionou a barragem de Marcos e outras iniciativas criativas e bem-sucedidas de agricultores nos quatro pontos do Estado, para serem disseminados pelos órgãos de apoio à agricultura capixaba. Mas o verdadeiro reconhecimento ainda está por vir, diz o pomerano. “A principal homenagem vai ser ver isso aplicado em outros lugares, gerando benefícios pra outras famílias”, prenuncia. 

 

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