Terça, 07 Mai 2024

Liberdade para as escravas domésticas

 

Tão logo foi aprovada a emenda constitucional que estende todos os direitos trabalhistas às empregadas domésticas (7 milhões no Brasil), a mídia foi invadida por uma enxurrada de artigos prevendo que o tiro sairá pela culatra, como na época da abolição da escravatura em 1888, quando a maioria dos escravos recém-libertados ficou entregue à própria sorte, caindo no desamparo, na miséria e na rua da amargura.  Agora, para escapar de um aumento de custos em torno de 9%, os patrões reduziriam suas domésticas à condição de diaristas, que somam outros milhões no país, como os bóias-frias de outrora, na zona rural.
 
 
Num longo (e otimista) artigo difundido pela internet, o juiz trabalhista Jorge Luiz Souto Maior, professor de Direito na USP, lembrou que sempre houve previsões catastrofistas a cada evolução legal em favor dos fracos e oprimidos. Por ocasião da lei de férias, em 1925, por exemplo, os bem nascidos disseram que esse período de descanso “destruiria o moral dos trabalhadores brasileiros”; em 1943, dizia-se que a Consolidação das Leis do Trabalho, vigente até hoje, mas em vias de precarização, “arruinaria as indústrias”; em 1963, o Estatuto do Trabalhador Rural “levaria a bancarrota no campo”. Alarido semelhante ocorreu quando da extensão de direitos a menores e mulheres.
 
 
“O trabalho escravo ainda se mantém sob as mais variadas formas”, começou Souto Maior, lembrando que há apenas 20 anos a Organização Internacional do Trabalho apresentou dados relativos a 8.986 denúncias de trabalho escravo no Brasil. Como reação, em 1995, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, do Ministério do Trabalho, para atuação específica no meio rural e investigação de denúncias de trabalho escravo; em 1998, foi aprovada a Lei 9.777, que alterou os artigos 132, 203 e 207 do Código Penal, considerando crime a exposição da vida ou a saúde das pessoas a perigo direto e iminente; a frustração a direitos assegurados pela legislação trabalhista mediante fraude ou violência; o aliciamento de trabalhadores mediante fraude); em 2003, foi anunciado o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, do Ministério do Trabalho e Emprego; em 2008, esse plano foi atualizado. No momento, o Senado discute o projeto de emenda constitucional contra o trabalho escravo, que prevê o confisco de propriedades em que trabalho escravo for encontrado, destinando-as à reforma agrária e ao uso social urbano.
 
 
Tudo isso mostra que a História não dá saltos, mas evolui lentamente, ora com medidas concretas baseadas em lei, ora com palavras e discursos que, curiosamente, nem sempre saem da boca das autoridades executivas e legislativas eleitas em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade. E não faltam no Brasil agremiações partidárias cujas siglas mesclam o D da democracia e o T do trabalhismo. 
 
 
No caso das domésticas recém-retiradas do limbo legal em que eram mantidas, o juiz Souto Maior lembra que “o que está em jogo não é simplesmente a possibilidade econômica dos patrões (ou patroas, como se diz) de suportarem os novos direitos das domésticas e sim a nossa capacidade de concebermos raciocínios que forneçam bases à consolidação de uma sociedade efetivamente justa, na qual o respeito à dignidade humana possa ser uma realidade para todos os cidadãos”.
 
 
Lentamente, 125 anos depois da libertação dos escravos em geral, o Brasil dá mais um passo – um passo doméstico – no âmbito dos direitos humanos para criar as condições de implantação de uma sociedade menos egoísta, mais solidária. É pouco, mas é lei e é bom para todos.
 
 
As dúvidas remanescentes devem desembocar na Justiça do Trabalho, que está aí para isso mesmo – resolver os conflitos entre os dois lados da realidade econômica, cuja dimensão mais elementar se condensa, exatamente, no trabalho das nossas queridas empregadas domésticas.
 
 
 
LEMBRETES DE OCASIÃO
 
 
 
“Não nos devemos levar só pelos sentimentos de filantropia em favor dos escravos quando arruinamos as nossas próprias famílias e prejudicamos o Estado (....) Que prurido de liberdade é esse, pois temos vivido com a escravidão por mais de três séculos e não podemos suportá-la mais alguns anos?”
 
 
 
Alencar Araripe, historiador cearense radicado no Rio na época da Lei Aurea de 1888
 
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“...a única forma eficaz de um empregador homenagear a sua empregada doméstica é a de respeitar os seus direitos.”
 
 
 
Jorge Luiz Souto Maior, juiz do Trabalho em Jundiaí e professor de Direito  na USP, em 2013 

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