Domingo, 28 Abril 2024

Tem gente na fila

 

Há alguns anos fui renovar meu passaporte e levei um susto  quando o recebi de volta e vi o carimbo –  Válido até janeiro de 2000! Era janeiro de 1990, e a validade de dez anos adentrava uma região obscura e incerta. Olhei espantada para o funcionário que me olhava de volta, indiferente à minha óbvia emoção –  “Como assim, 2000?” Uma previsão bíblica pairava sobre nossas cabeças, e mesmo quem não acreditava olhava para esse distante futuro com receio. Pensa que ele foi simpático? “Tem gente na fila esperando, minha senhora!”  
 
 
Toda fila tem gente, claro, ou não seria uma fila, e todos os enfileirados  estão ali esperando alguma coisa, que pode ser o trem azul ou o fim do mundo. Fiquei olhando aquelas pessoas cujos novos passaportes  iriam também adentrar  o improvável alvorecer de uma nova era... Teriam a mesma reação? A cara feia do funcionário me fez desistir da espera, quero dizer, não esperei para conferir como os outros reagiriam diante da prova cabal de que 2000 chegaria... Ou o governo poria até 1999.
 
 
Além da praga bíblica, 2000 tinha também a praga do milênio, o famigerado Y2K, pronto a devorar nossos computadores. Os gênios da modernidade  não acreditavam que a tecnologia revolucionária que mudou nossas vidas ia durar tanto, e não se prepararam para a lendária mudança  dos dígitos -  19 para 20.  Tudo deu certo, mas e se não desse? Por certo o sol nasceria no horário de sempre no dia seguinte, e a terra continuaria rodando. Afinal, estão ambos girando no espaço há muito tempo sem precisar de computadores. 
 
 
O custo total para corrigir os efeitos  Y2K no mundo todo foi estimado em mais de 400 bilhões de dólares. Alguns resultados desastrosos:  em Sheffield, na Inglaterra, foram enviados resultados errados em testes da Síndrome de Down para 154 mulheres grávidas; duas abortaram, pensando  que os fetos tinham a doença, e  quatro crianças deficientes nasceram.  Em Onagawa, no Japão, o alarme de uma fábrica nuclear soou a cada dois minutos depois de meia noite. Imagina o susto!
 
 
A maior empresa de celulares do Japão anunciou em 01/01/00 que alguns modelos de telefones estavam deletando as mensagens novas ao invés das velhas, quando a memória dos aparelhos ficava  cheia. Na Austrália, as máquinas automáticas de passagens de ônibus pararam de funcionar em dois estados. A data 01/0119100 apareceu nos  sites do Serviço de Meteorologia  da França, e do Obsevatório Naval dos Estados Unidos, que mantém a hora oficial do país. 
 
 
Adentrei gloriosamente o ano 2000 em Vitória, em baixo de chuva que não respeitou as roupas brancas e a festa ao ar livre.  Mas foi um bom augúrio, porque a água é um dos quatro elementos sagrados e simboliza mudanças – lavando o passado nos preparamos para o futuro.  Foi a última entrada de ano que passei em Vitória, desde então tenho estado por aqui, recebendo cada  novo ano com três horas de atraso. O tempo é relativo, disse Einstein, mas nos permite dar a volta virtual pelo mundo, assistindo  festas de ano novo.
 
 
Em 1998, quando o mundo começou a perceber o problema do Y2K, Alan Greenspan fez uma declaração pública de mea culpa: “Sou o culpado, eu criei o problema. Escrevi esses programas nos anos 1960s e 1970s, e fiquei orgulhoso de poder economizar algum espaço no meu programa eliminando o 19 do ano. Naquela época isso era muito importante”. Conseguimos sobreviver a pragas ainda piores, e essa não provocou o anunciado fim do mundo. E vamos em frente que a fila é longa.

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