Homilia de Dom Luiz Fernando e ato público marcaram Festa de Nossa Senhora das Neves
“A implantação do Porto Central não pode – e não deve – isolar este templo, símbolo da fé do povo do sul do Espírito Santo e do norte do Rio de Janeiro”. A defesa, dita com firmeza pelo bispo Dom Luiz Fernando, da Diocese de Cachoeiro de Itapemirim, reforça o sentimento de urgência e resistência que marcou a 275ª Festa de Nossa Senhora das Neves, realizada nessa terça-feira (5) no santuário que leva o nome da santa em Presidente Kennedy, no sul do Estado. Durante a homilia da missa solene, o bispo expressou preocupação com o “lastro de destruição” que começa a ser deixado já na fase de implantação do empreendimento de grande porte e as ameaças concretas “à vida, à fé e à subsistência de centenas de famílias”.

Contestado há anos por organizações socioambientais, pescadores e lideranças religiosas, o porto prevê a construção de um complexo industrial às margens do oceano, em uma região que abriga restingas, manguezais, mata atlântica e territórios ecologicamente sensíveis. A área da igreja será transformada em uma espécie de ilha em meio às obras, onde serão construídos um estacionamento de caminhões e estruturas para estocagem de tonéis de até 20 metros de altura. A estrada de acesso ao santuário também será substituída por um canal portuário.
As obras da primeira fase, iniciadas em dezembro de 2024, preveem a supressão de mais de 2 mil hectares de vegetação nativa. Desde março último, um trecho de 3,1 quilômetros entre as praias de Marobá e Neves está com acesso interditado ao público, devido às intervenções, e a Prefeitura de Presidente Kennedy alega que a medida visa prevenir riscos de acidentes e está prevista no licenciamento ambiental. Nesta etapa, é construída a infraestrutura para um terminal de granéis líquidos de águas profundas, que servirá de transbordo de petróleo entre navios de grande porte.
As próximas etapas incluem terraplanagem, produção e transporte de rochas para o quebra-mar sul, instalação da central de fabricação de elementos de concreto, e dragagem do canal de acesso. A pedreira que fornecerá as rochas, situada a 27 quilômetros da área portuária, está na fase final de preparação. A conclusão da primeira fase está prevista para meados de 2027.
Ao final da missa, também foi lida uma carta do bispo de Campos, no Rio de Janeiro, Dom Roberto Ferreria, que evocou o apelo do Papa Francisco na encíclica Laudato Si’, ao conclamar a Igreja a defender a Casa Comum e denunciar práticas que marginalizam os pobres e destroem a criação.

“Unidos pela alegria de festejar a mãe, esperança nos humildes e pequenos, manifestamos nossa solidariedade e comunhão plena, na defesa da integridade desse precioso santuário, ameaçado seriamente pelo projeto do Porto Central. Ao mesmo tempo, denunciamos outros tantos projetos ligados à mineração de alto-mar e à exploração petrolífera, que atingirão em cheio as populações ribeirinhas, pescadoras e cidades litorâneas, alterando profundamente a biota marítima, o acesso às praias e o próprio direito de habitar e ser cidade”, afirmou.
Diversas entidades e movimentos sociais também se manifestaram em ato público durante a Festa de Nossa Senhora das Neves, uma das mais antigas manifestações religiosas do Espírito Santo, que atrai romeiros não só do sul capixaba, mas também de municípios do norte do Rio de Janeiro.

“Nós temos aqui, em torno do santuário, os alagados do Itabapoana, que fica bem atrás da igreja. A gente calcula que possivelmente tem umas 10 mil pessoas que dependem dessa região, de sobrevivência mesmo. E aí temos muita preocupação justamente com a chegada do porto, onde o canal vai estar muito próximo dos alagados. Não é só a questão das pessoas, mas também o santuário, em si, é um problema”, detalhou Carlos Freitas, da ONG Restauração e Ecodesenvolvimento da Bacia Hidrográfica do Itabapoana (Redi).
Ele criticou a falta de diálogo da empresa, “O porto simplesmente conquistou licenciamento, mas dentro desse processo, não vemos nenhuma negociação nem com pescadores, nem com agricultores, e nem mesmo com a Igreja, a própria Diocese. Estamos tentando barrar a vinda do porto, mas a cada passo ele vem avançando”, destaca.
Cerca de 10% da área total prevista para o projeto já foi desmatada, aproximadamente 200 hectares, aponta o representante da ONG. “Eles já começaram a destruir, e estão usando pedras de uma pedreira localizada dentro de um assentamento do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra] para construir um píer”, denuncia.

O ato contou com o intercâmbio da Rede Mundial de Resistência às Atividades Petroleiras – Oilwatch, que percorreu cerca de 400 km de costa atlântica, entre a Baía de Guanabara (RJ) e Presidente Kennedy para analisar os impactos da exploração offshore do petróleo na região, que concentra mais de 80% da produção de petróleo no Brasil.
Marcelo Calazans coordenador da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) no Espírito Santo e membro da campanha Nenhum Poço a Mais, aponta que uma das principais constatações é a falta de necessidade de mercado para a construção do Porto Central, a poucos quilômetros de distância de um dos maiores investimentos em infraestrutura portuária da América, o Porto do Açu.
O empreendimento já opera com ociosidade no município de São João da Barra, na bacia de Campos, norte do Rio de Janeiro. No ano passado, a extração na bacia de Campos foi menos de 50% do que era em 2017. Segundo ele, o interesse das empresas portuárias é “mais se apropriar da terra e expulsar as pessoas dessas terras” do que construir um porto necessário.

“Mostramos como essa exploração cria duas cidades: a dos prédios da elite técnica e a dos pescadores que perderam seus mangues e vivem em esgoto a céu aberto. É uma farsa dizer que o petróleo traz progresso. O Porto do Açu, a poucos quilômetros daqui, está ocioso. Não há justificativa para construir outro porto desse porte. Esse não é um projeto pensado para atender demandas reais. É um projeto que se ancora na especulação fundiária e na expulsão de comunidades”, reitera. “Aqui, não é só a fé que move montanhas. O lucro também move, e move mais rápido”, critica.

Apesar de um abaixo-assinado com mais de 25 mil assinaturas e antigos decretos estadual e federal que protegiam a área – ambos revogados durante o Governo Temer -, o projeto segue avançando. Milhares de pescadores, só em Kennedy e arredores, serão impactados diretamente, e ainda assim não são reconhecidos oficialmente, ressalta Rosinea Vieira, conhecida como Neia, presidente da Associação de Pescadores Artesanais de Porto Santana (APAPS).
“Para a água não existe fronteira. O impacto não vai ficar só em Presidente Kennedy. Vai se espalhar pelo litoral. A pesca é tradição, é cultura, é subsistência. Esse porto quer tirar nossa identidade. Muitos pescadores desistem da luta por medo das ameaças. Mas a gente segue resistindo”, observa. Ela denuncia também os efeitos sociais colaterais trazidos por grandes empreendimentos: prostituição, violência, insegurança e degradação das condições de vida. “Não há progresso quando se destrói a vida”, alerta.
Ela alerta não só para a invisibilidade dos pescadores e o risco de destruição da pesca artesanal, mas também para os efeitos sociais colaterais trazidos por grandes empreendimentos: prostituição, violência, insegurança e degradação das condições de vida. “Não há progresso quando se destrói a vida”, aponta.
A pedreira, situada a 27 quilômetros da área portuária, está na etapa final de preparação para iniciar o fornecimento das rochas destinadas ao quebra-mar. O transporte do material seguirá um planejamento logístico detalhado, com monitoramento socioambiental. No entanto, agricultores assentados denunciam que cerca de 75% da área da pedreira integra território federal destinado à reforma agrária, sem que houvesse consulta às famílias.
“O barulho é diário, começa às seis da manhã. Ninguém veio nos consultar”, relata Félix de Jesus, morador do assentamento José Marcos de Araújo, que já sente os impactos sobre a produção de alimentos e a rotina da comunidade, como o o fim da tradicional Festa do Cruzeiro na Serrinha, ponto turístico e religioso que desapareceu do mapa oficial da prefeitura.

“O porto já desalojou moradores, destruiu casas e está comprometendo a agricultura familiar. A pesca já está acabando. E o mais grave é que ninguém nos ouviu. Só fomos enrolados”, relata.
A militante Maria Helena Foronda, do Instituto Natura, do Peru, expressou sua solidariedade e ressaltou as semelhanças com o que acontece em seu país, onde projetos extrativistas afetam pescadores artesanais, patrimônios históricos e santuários. “Estamos vivendo um processo de destruição parecido no Peru. Esses projetos trazem riqueza para poucos e devastam comunidades inteiras. Eles geram lucros que acabam nas mãos de poucos, à custa de muitas pessoas que merecem viver com dignidade. Essa luta é nossa também”, afirmou.
Fabian Pacheco, da Costa Rica, lembrou que seu país está livre da exploração de petróleo há mais de 25 anos graças à mobilização popular. “É possível vencer. Um pequeno grupo de pessoas, quando está certo, pode parar a destruição. Estamos aqui para dizer ao povo do Brasil: vocês não estão sozinhos”, acrescentou. Para Carlos Freitas, a luta segue, mesmo diante da força do capital. “Nossa esperança é que a conscientização cresça. Que a fé, a cultura e o território sigam resistindo. Antes que o porto venha — e leve tudo!”.