Quinta, 25 Abril 2024

Leonardo Bourguignon: 'O capixaba conhece muito pouco sua história'

leonardo_bouguignon_youtube Reprodução/ YouTube
Nascido em Piúma, no litoral sul do Espírito Santo, o professor Leonardo Bourguignon, doutor em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), está lançando pela editora Cousa o livro Com Quantas Mulheres se escreve uma história, que traz a trajetória de sete mulheres que são personagens históricas do nosso Estado.

Conversamos com ele sobre quem são essas mulheres e porque suas trajetórias foram invisibilizadas, sobre a relação do capixaba com sua história e memória, e sobre as importantes revoltas indígenas no Espírito Santo, outro tema pouco conhecido da maioria. 

Como você enxerga a relação do capixaba com sua história e memória? Sabemos pouco delas? Por quê? E o que isso implica?

Infelizmente, a história regional é uma história que foi ofuscada. Temos até a década de 90 um número muito pequeno de produções com essa característica, o que vem sendo mudado nas últimas décadas graças a uma série de pesquisas que a Ufes [Universidade Federal do Espírito Santo] tem organizado voltadas para história do nosso Estado, além de e outras faculdades que também começaram a se atentar para essa questão, colocá-la no currículo e fomentar pesquisas.

Temos uma história a ser escrita, há muitos aspectos que não sabemos. Tivemos uma revolta indígena que aconteceu no Espírito Santo e deixou preocupado o vice-rei do Brasil, um movimento que nem nos livros didáticos de história do Espírito Santo foi mencionado. O capixaba conhece muito pouco sua história.

Temos uma identidade tão característica, tão própria. Quando conhecemos outros lugares do Brasil vamos entendendo as coisas nossas. Temos visto trabalhos importantes a partir da Secult [Secretaria de Estado da Cultura] e da Ufes, mas ainda temos muito a trabalhar para tentar reverter essa situação, pois a sensação é de que a maior parte da população é totalmente alheia ao que aconteceu.

Temos um estado que se olharmos a demarcação desde a capitania, de norte a sul, é praticamente a mesma. Mantivemos nossa identidade territorial, perdemos o interior para Minas Gerais, isso é questionado, se representou um atraso, um isolamento da capitania, mas se discute que esse isolamento não foi tão isolado como pensávamos. Mas de certa forma contribuiu para que mantivéssemos características únicas. A população precisa saber dessa história, ela precisa entrar nas casas, ainda é muito acadêmica e precisa se tornar uma história escolar e uma história popular.

Nesse sentido, quando eu escrevo, tenho muita preocupação em escrever com uma linguagem acessível. Acho uma falha da academia escrever muito para ela mesma, acho importante que consiga escrever numa linguagem que as pessoas possam entender, senão o conhecimento termina encastelado na universidade e a gente precisa que a população tenha acesso a essa história.

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Seu último livro traz um pouco da história de sete mulheres do Espírito Santo. O que te motivou a escrevê-lo?

Eu trabalho em sala de aula com crianças no Ensino Fundamental 2 e também com formação de professores especialmente do 1º ao 5º ano. Quando você pega um livro didático de História, vê que é exclusivamente feito de homens, uma história de homens, com pouquíssimas mulheres sendo referência. São raríssimas. Essa lacuna, além da história do Espírito Santo ser tão relegada, sempre me incomodou muito.

Quem são essas mulheres e quais os critérios usou para escolhê-las?

Tentei pincelar e pensar sete mulheres que tivessem vivido ao longo da história de modo que a partir da leitura sobre essas mulheres se pudesse conhecer a história do Espírito Santo. Começa com Branca Coutinho, uma indígena, depois vem Luiza Grinaldi, a capitoa, Maria Ortiz, também muito conhecida. Passamos pela questão dos africanos com uma personagem que tem sido conhecida que é Zacimba Gaba, trouxemos uma imigrante, Elena Caliman Sossai, ainda a sinhá Henriqueta, mãe de Jerônimo e Bernardino Monteiro, e por último dona Maria da Glória Lima dos Santos, uma senhora que ainda esta viva no bairro Resistência, em Vitória.

A partir da história dessas sete mulheres a gente consegue ter uma visão geral de como o Estado foi construído, como o presente que vivemos tem marcas do passado. É um estado com grande miscigenação cultural e um estado profundamente excludente. A história de dona Maria mostra isso, é um estado que exclui parte da população, que ainda precisa conquistar seu espaço.

Na obra você opta por usar uma linguagem em primeira pessoa, ou seja, uma narrativa ficcional em que elas contam a própria história.

Uso esse recurso da primeira pessoa para cativar mais o leitor e traduzir melhor essa história. Alguns dos personagens tem bastante coisa escrita sobre elas, como Luiza Grimaldi e Maria Ortiz, que é tema de muitas controvérsias. A Bianca Coutinho, por exemplo,tem poucas linhas falando sobre ela, aí entra a questão da ficção. Mas o livro tem toda uma pesquisa histórica.

Você tem outro livro chamado "De muribeca a Guaraparim", esse já com edições esgotadas, que aborda a história da colonização do litoral sul do Estado. Que elementos você destacaria desse processo?

Nós temos uma história do Brasil que foi iniciada em 1854 com Francisco Adolfo de Varnhagen, que escreveu um livro chamado História do Brasil, no qual construiu as bases do pensamento da história brasileira que até os dias atuais está presente nos livros didáticos.

Uma das ideia básicas dele é que esse foi um país construído graças ao trabalho dos portugueses, que conseguiram unir essa nação, apesar dos índios rebeldes e dos negros indolentes e também rebeldes. Nessa história que vai se construindo, que entra na história é o indígena que ajudou os portugueses.

O índio que não aceita colonizador fica visto como o selvagem. Convivemos com essas duas representações, do índio que é amigo, o tupi, e o que resiste, o tapuia. Essa visão da história nos atrapalha a perceber o papel do indígena, já que o tempo todo a história foi construída tentando se minimizar o papel desse indígena.

Um dos motivos para que o Estado tenha demorado a avançar para o interior foi a resistência indígena. Depois de 300 anos de colonização, praticamente todas as localidades que haviam no Espírito Santo como núcleos coloniais estavam no litoral, havia um movimento em Viana e um nucleozinho em Cachoeiro, tudo muito pequeno e muito atacado, com dificuldade de sobreviver.

Aí você tem na história o discurso de que os imigrantes chegaram para povoar o Estado. É um discurso com pretensão de apagar o indígena da história. Porque se eles vem povoar então não morava ninguém. Como não morava ninguém se você tem um território que era dominado por indígenas? Se você ler com detalhes a história dos migrantes, vai perceber que o tempo todo eles estão se enfrentando com indígenas ou fazendo alianças, já que parte dos povos indígenas resiste a essa invasão e outra parte se alia, casa com pessoas, vai trabalhar para eles.

Essa forte influência indígena que vai no mínimo até a década 1860 no Estado é apagada propositalmente.

Uma das histórias interessantes que você estudou foi a da Revolta de Reritiba, que embora seja muito antiga, só recentemente tem vindo à tona na historiografia. O que ocorreu nesse evento histórico?

Ainda para reforçar a questão dessa importância do elemento indígena na história do Estado, das cinco primeiras cidades, três foram aldeamentos indígenas: Reis Magos [hoje Nova Almeida, na Serra], Guarapari e Reritiba, hoje Anchieta, além de Vitória e Vila Velha.

A maior do sul do Estado era Reritiba, hoje famosa por ter sido o lugar que José de Anchieta escolheu para viver seus últimos dez anos de vida. A história desse lugar simboliza bem a história do litoral do Espírito Santo. A presença dos jesuítas sempre foi contestada.O que aconteceu em Reritiba foi um exemplo perfeito da colonização, de uma história sempre salpicada por conflitos, com a presença dos padres sendo discutida.

O que acontece na Revolta de Reritiba é que em 1742 a comunidade indígena que ali vivia se revolta. Acontece um evento específico que vai ser o estopim de uma grande confusão, porque há muito tempo as pessoas estavam sentadas sobre um barril de pólvora que explodiu.

Naquele ano ocorre uma procissão em homenagem a São Miguel, na qual ao final um indígena que tocava na procissão é atacado por um religioso, numa briga por ciúmes de uma índia, na qual ele acaba gravemente ferido.

Uma parte da aldeia se revolta e expulsa os jesuítas de Anchieta. O responsável provincial pela Companhia de Jesus manda trocar os jesuítas do comando mas estes são novamente negados pelos indígenas. Um padre que vivia em Guarapari consegue negociar e fazer um acordo para que os indígenas aceitassem os jesuítas de volta e assim teriam seu pleito atendido. Eles não queriam viver sob o comando dos jesuítas, até aceitavam que eles vivessem ali e se dispunham a alimentá-los, mas não queriam trabalhar para os jesuítas. Aceitavam sustentá-los mas queriam ter autonomia para determinar quem seriam as autoridades.

Com o acordo feito, os jesuítas voltam para a aldeia mas descumprem o acordo. Convidam líderes da revolta para dentro da Igreja e fazem uma emboscada com alguns índios aliados. Matam e prendem alguns deles. Depois da morte desses indígenas, uma parte significativa da aldeia vai embora, saqueia a aldeia e vai para o Orobó, a 12 km de distância e fundam uma aldeia ali, no interior de Piúma.

E como se dá o desenvolvimento dessa aldeia? Quanto tempo dura experiência o que se pode saber pela historiografia sobre essa comunidade rebelde?

Aí a gente tem uma lacuna na documentação e não consegue saber exatamente como essa revolta acabou, quando ela acabou e se ela acabou de fato ou houve um acordo, uma acomodação entre os indígenas rebeldes e autoridades da época.

Em 1750, o bispo do Rio de Janeiro vem ao Espírito Santo e quer conhecer o Orobó. Quando ele chega, um grupo de índios armados diz que cacique não está e que não quer conversar com ele. Isso oito anos depois do incidente da revolta. Em 1761 tem Devassa, dois anos depois da expulsão dos jesuítas, O governo português organiza essa devassa para tentar justificar expulsão dos jesuítas. É um documento riquíssimo em que se vão ouvir moradores de Reis Magos, Vitória, Guarapari e Reritiba, incluindo nove indígenas de Reritiba, vários morando no Orobó e que apesar do discurso para tentar agradar seus questionadores que são da Igreja Católica, deixam ver em seus discursos que ainda havia rixas entre Orobó e a aldeia de Reritiba, já elevada à categoria de vila nesse momento.

Quase 100 anos depois, o capitão-mor de Anchieta é assassinado por um grupo de indígenas dentro de sua casa e eles vão para Piúma, onde ficam ameaçando Anchieta. Nas minhas pesquisas descubro que o filho e neto dele também assumem o cargo e são assassinados. A situação vai ficar tensa por muito tempo aqui na região. Temos documentos de 1863, de um jornal, carregado por todas tintas pejorativas, dizendo que os índios do Orobó são perigosíssimos. Isso 120 anos depois da revolta.

Em Piúma tínhamos até a década de 1970 uma comunidade chamada Campos dos Índios, que resistiam à tomada de suas terras. Isso vai mostrando que a região foi um ponto de resistência por muito tempo a qualquer projeto de poder.

Qual a importância de conhecer a história dessa revolta?

Acho que o Orobó é um exemplo da resistência. Não só indígena porque há relatos de fugitivos negros que vão para Orobó, de algumas pessoas da aldeia de Guarapari que tentam manter contato com Orobó.

Demonstra que a história é muito complexa. Por mais que tentemos contá-la com a dicotomia entre colonizador e colonizado, esses filtros são muito permeáveis. Quando se tenta entender o que aconteceu, quanto mais se estuda mais se percebe como essa história é muito mais rica e complexa.

Não dá mais para minimizar o papel de indígenas, afrodescendentes e mulheres nessa história, nem o papel dos pobres. Fala-se muito da migração europeia, mas recebemos muita gente de outros estados também.

Essa história precisa ser escrita e chegar nas pessoas. Essa identidade migrante do Estado como fruto de uma migração europeia é uma falácia. Houve participação importantíssima do imigrante europeu mas o Estado é múltiplo e muito mais complexo.

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