Estado deve realizar a regularização fundiária de territórios quilombolas, acrescenta Procuradoria

A Suzano (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria) cometeu crimes de grilagem para registrar milhares de hectares de terras localizadas no território quilombola tradicional do Sapê do Norte, situado nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra. A denúncia é feita pela Procuradoria Regional da República da 2ª Região (PRR2), em manifestação no âmbito do processo judicial – Ações Civis Públicas nº 0104134-87.2015.4.02.5003/ES e nº 0000693-61.2013.4.02.5003/ES – em que o Ministério Público Federal (MPF/ES) requer a nulidade das matrículas de cerca de 30 imóveis localizados no Sapê do Norte, em função de comprovado processo fraudulento, além de outras medidas direcionadas à própria empresa, ao governo do Espírito Santo e ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
A peça, assinada pelo procurador regional da República Tomaz Henrique Leonardos, contribui para o entendimento do contexto judicial atual em torno da regularização das comunidades quilombolas do Sapê do Norte. Como mostrado na primeira parte desta reportagem, a Suzano é a principal interessada em impedir a regularização dos territórios tradicionais, por ocupar a maior parte das terras em processo de regularização pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). No caso de Linharinho, 89% da área declarada quilombola pela Portaria 495/2024 está sob domínio da multinacional, informa o Incra.
A situação é semelhante no que se refere aos territórios das demais comunidades, que totalizam mais de 30 já certificadas pela Fundação Cultural Palmares, como se pode colher dos relatos dos moradores – exaustivamente registrados em inúmeras reportagens publicadas nas duas últimas décadas por este Século Diário e como qualquer observador minimamente atento pode perceber ao ver imagens aéreas do Sapê do Norte ou ao transitar pelas estradas que cortam o território e mesmo pelos trechos da BR-101 que margeiam os monocultivos de eucalipto que dominam a paisagem e figuram como o uso do solo que mais cresce no Estado, segundo o Atlas da Mata Atlântica do Espírito Santo.
Na Manifestação, a PRR2 reafirma questões levantadas inicialmente pelo MPF e concorda com manifestações já realizadas pelo Incra no processo, ressaltando a dinâmica fraudulenta que caracterizou a apropriação de terras pela empresa em tempos muito anteriores ao início dos processos administrativos de regularização dos territórios quilombolas, e que, por isso, não há porque condicionar a nulidade das matrículas comprovadamente fraudulentas a qualquer exigência de avanço nos processos de titulações quilombolas.
Os processos de solicitação de regularização de territórios quilombolas só começaram a tomar fôlego no Brasil após a publicação do Decreto federal 4.887/2003, no primeiro ano do governo Lula. Os processos foram paralisados por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3239/2012, que visava derrubar o decreto. Somente após a conclusão do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018, considerada uma “vitória histórica do povo quilombola”, os processos puderam legalmente ser retomados, mas foram, por sua vez, abafados politicamente pelas últimas gestões federais. A retomada efetiva dos processos só aconteceu de fato a partir de 2023. No Espírito Santo, o Incra declarou a formação de uma força-tarefa para agilizar os processos paralisados.
Titulação já!
Citando argumentação do Incra, a PRR2 ressalta que “ainda que não se pudesse falar em ocupação quilombola no local, o que não é o caso, as terras que estavam sob titularidade da Fibria [ex-Aracruz Celuose, atual Suzano] somente passaram a sua esfera de domínio em razão do esquema fraudulento empreendido pela empresa em conluio com seus ex-funcionários, o que restou comprovado nos autos. Assim, data vênia, pouco importa a conclusão do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – RTID ou a fase do Processo Administrativo de Titulação de Terras Quilombolas junto ao Incra, vez que devidamente comprovado o ato ilícito praticado pela empresa e seus ex-funcionários”.
A afirmação visa contestar decisão tomada pelo desembargador federal André Fontes, que intimou o Incra a apresentar uma série de informações relativas aos processos de regularização das comunidades quilombolas, como pré-condição para que o julgamento das ações civis públicas seja retomado. Nesse sentido, o procurador da República afirma concordar com o posicionamento do Incra, visto que “a nulidade dos títulos [as matrículas de imóveis de posse da Suzano] já pode ser julgada com as provas existentes, independentemente do andamento dos processos de quilombolas relativos a essas terras no Estado do Espírito Santo na autarquia, uma vez que o objetivo da ação não é a titulação quilombola, mas a declaração de nulidade dos títulos de domínio de terras devolutas que foram outorgadas, mediante fraude pelo Estado do Espírito Santo à Fibria S/A, atual Suzano S.A”.
Tomaz Henrique Leonardos defende que “o pedido de diligência [feito pelo desembargador ao Incra] para complementação de informações sobre o processo administrativo quilombola é estranho ao objeto principal da lide. Isso porque as terras objeto da lide somente passaram a ser dominadas pela empresa ré em razão da fraude devidamente comprovada nos autos”.
A Manifestação da PRR2 também envolve o governo do Estado, alegando que “a ausência de conclusão definitiva desses procedimentos administrativos não exime o Estado de sua obrigação constitucional e legal de promover a regularização fundiária das comunidades quilombolas”.
Reparação e suspensão de financiamentos
O Estado do Espírito Santo também é réu, assim como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), na ACP inicial, interposta pelo MPF em 2013, citada no início desta reportagem. Para cada um dos três réus, há pedidos elencados pelo órgão ministerial, quase todos eles deferidos pelo juiz federal Nivaldo Luiz Dias em outubro de 2021.
Em sua decisão, o magistrado determina que seja declarada a nulidade de 30 matrículas de imóveis registradas de forma fraudulenta pela então Aracruz Florestal (ex-Aracruz Celulose, ex-Fibria, atual Suzano), nos anos de 1973 a 1975. A sentença também condena o Estado do Espírito Santo “a titular as terras devolutas que reverteram ao patrimônio público estadual em virtude da declaração de nulidade”, com base na Constituição Federal e na Lei estadual art. 3º da lei estadual 5623/1998.
À Suzano, determina o pagamento de R$ 1 milhão como reparação por danos morais coletivos, a serem direcionados ao Fundo de Direitos Difusos, e, ao BNDES, que “suspenda qualquer operação de financiamento direto, indireto ou misto” à empresa em Conceição da Barra e São Mateus e, aos Cartórios de Registro de Imóveis nos dois municípios, que “façam constar o ônus nas respectivas matrículas”.
Empregados ‘laranjas’
A sentença traz longas citações às informações levantadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Aracruz, realizada pela Assembleia Legislativa em 2002 (Resolução 2028/2002), que baseou a elaboração da ACP pelo MPF e evidenciou que “a Aracruz utilizou seus funcionários como ‘laranjas’ para obter a titulação de grandes extensões de terra pública em completa violação à legislação vigente à época.
A investigação legislativa, afirma o magistrado, “relata que os empregados da Aracruz fizeram declarações falsas perante o Departamento de Terras e colonização do Estado do Espírito Santo DTC, órgão responsável pela regularização fundiária, visando a indevida obtenção de títulos de terras devolutas para a empresa; (…) que a pedido da Aracruz se limitavam a assinar os documentos previamente preparado pela empresa, inclusive sem receber nenhum valor como contraprestação pela utilização de seus nomes (…); que, após a legitimação da posse das terras devolutas com a titulação, elas eram transferidas imediatamente às empresas do Grupo Aracruz Celulose e que, na maioria dos casos, o período em que permaneciam na empresa não excedia sem mesmo uma semana. Afirmando que os registro imobiliários a de transferência de domínio dos empregados para as empresas do Grupo Aracruz”.
A sentença ressalta ainda que “algumas das terras devolutas fraudulentamente tituladas em favor do grupo Aracruz são objeto de procedimentos administrativos perante o Incra visando à regularização de terras quilombolas” e que, “ocorrendo a conclusão dos estudos pelo Incra que identificam e delimitam a terra quilombola será viável a sobreposição entre terra quilombola e terra devoluta fraudulentamente titulada”.
Acordo?
Em paralelo às ações judiciais e aos processos administrativos, segue ainda uma tentativa de acordo entre a Suzano e as comunidades do Sapê do Norte, intermediadas pelo governo do Estado, por meio de uma Mesa Estadual para Resolução de Conflitos Fundiários, coordenada pela Secretaria Estadual de Direitos Humanos (SEDH). Na primeira e até agora única reunião realizada este ano, no entanto, o que ficou explicitado foi a distância abissal entre as necessidades das famílias e a disponibilidade da multinacional em negociar a partir de bases minimamente razoáveis.
Aos 10 hectares de terra por família, solicitados pela Comissão Quilombola do Sapê do Norte, a papeleira respondeu com a contraproposta de apenas 2,5 ha. E, mesmo antes da resposta formal da Comissão, a empresa já havia iniciado a entrada nos territórios para refazimento e expansão de seus monocultivos, atropelando a mediação feita pela SEDH.
A leitura do cenário atual encontra portanto uma combinação importante de fatores: graves denúncias de crimes fundiários cometidos pela Suzano sendo reafirmadas; processos judiciais tramitando em grande parte favoravelmente às comunidades quilombolas; incontáveis evidências de crimes ambientais e sociais acumulados pelas papeleiras nos últimos 60 anos; e um contexto político que volta a oxigenar processos administrativos, não apenas em âmbito federal, mas também estadual, considerando que, apesar da fraca atuação, a Mesa Estadual sinaliza o reconhecimento, por parte do governo estadual, de sua corresponsabilidade pela demora na regularização dos territórios quilombolas tradicionais.
A pergunta é: de que maneira esse contexto pode trazer avanços reais na luta pela garantia de direitos das populações quilombolas do Espírito Santo? Depois de mais de três séculos de escravização legalizada e pouco mais de 100 anos da chamada abolição da escravidão, o povo negro brasileiro encontra nos quilombos rurais uma forma de resistir à pressão capitalista de expulsá-los para as periferias das cidades.
Preservando tradições culturais ancestrais e os recursos naturais de seus territórios, as comunidades quilombolas exigem respeito a seus direitos constitucionais para continuarem a realizar, com mais segurança e dignidade, uma forma de viver que traz muitas respostas para a crise climática e outras crises que o “antropoceno” tem produzido. Quanto tempo mais será preciso (ou possível) esperar para mudanças efetivas na gestão do território do Sapê do Norte, na direção da verdadeira justiça social a povos vulnerabilizados e de usos do solo mais alinhados com a reconciliação do ser humano com as leis naturais do planeta Terra?