Terça, 14 Mai 2024

Reportagem especial Solta o preso

Reportagem especial Solta o preso
Texto: Henrique Alves
Fotos: Gustavo Louzada/Porã
 
Como a maioria dos cultivadores, F. começou a plantar a própria erva por dois motivos. Um: queria algo saudável. Dois: pela vez em que se sentiu um bandido. A Praça do Papa, em Vitória, recebia um daqueles colossais eventos que costumavam acontecer e, praxe, rodinhas se formaram em frente ao palco imenso onde rolavam os shows. A fumaça subia. Pouco depois bateu a polícia: uma ponta foi tudo o que a abordagem encontrou. 
 
Bastou. Aquele terço de baseado condenou os jovens à execração pública. “Não apresentei resistência nenhuma. Os caras me algemaram, me deixaram lá para todos os meus amigos verem, a minha família ver”. Um a um, algemados, foram trancafiados na viatura e encaminhados para a Chefatura de Polícia, na Reta da Penha - muita gente, ele não lembra o quanto com precisão. Só foram liberados alta madrugada.
 
Uma experiência aviltante que ainda hoje o mortifica. Tinha 16 anos e não há muito dera o primeiro trago. Após o episódio a desconfiança dos pais virou certeza, o que, no entanto, não demoveu o filho de suas escolhas. “Meus pais sabem que eu fumo, mas não é uma coisa que a gente converse abertamente. Já falei muito sobre isso com eles, exponho opinião”, destaca ele, hoje com 30 anos. 
 
Como se sabe, o assunto ainda é delicado, razão pela qual os personagens requereram a preservação de identidade, profissão e residência. 
 


Voltando. Aos 18 veio a primeira experiência em autocultivo. Procurava sobretudo qualidade. “Um dia você pega uma maconha boa, outro uma ruim. Você não sabe o que está fumando: pega para relaxar e na verdade te deixa ansioso”, argumenta. 
 
A detenção também foi fator determinante: “Não queria passar por situações que não gostaria de passar. Não queria subir morro e lidar com pessoas que estavam ali por outras questões muito mais complicadas que a minha. Não queria participar disso e não queria ser alguém taxado de financiador do tráfico”. 
 
Ele e um amigo empreenderam o cultivo de guerrilha, ou seja, no meio de uma mata qualquer. Cultivaram cerca de 30 pés, porém sem êxito, ainda não dominavam técnicas de cultivo: a Cannabis é uma planta rigorosa com iluminação e qualidade do solo. 
 
Melhores safras viriam depois, agora no esquema indoor (em interior), modalidade que pode ser desenvolvida em varandas, banheiros, guarda-roupas, garagens, terraços. Demanda investimento de pelo menos R$ 500, sobretudo em estrutura para iluminação, o cultivo indoor demanda lâmpadas específicas. Ao final a conta de luz estoura. Foram mais cinco tentativas; a última deu-se há sete meses e rendeu quatro pés em floração.
 
Ao seu lado, J., 26, também se dedica ao indoor. Em casa, encontra a compreensão que na casa do amigo não passa de tolerância. É simbólica a única preocupação de seu pai: “Onde é que você está comprando?”, costuma perguntar. O pai, ele sabe que já fumou. A mãe, apenas desconfia.
 
Deu o primeiro tapa aos 12, mas começou de verdade aos 14 anos. A primeira vez foi com amigos em uma festa. Viajou celestialmente. Chegou em casa abrindo o jogo: “Pai, mãe, fumei um...”. Sua mãe apenas olhou: “Toma cuidado, hein”. 
 
A preocupação inicial foi preservar o filho de certos corolários: moravam em uma região rodeada de favelas, presenciaram cenas lamentáveis. Não que estigmatizassem a pobreza ou a periferia, mas sabiam dos graves problemas específicos que afetam setores dessas regiões. A relação franca que sempre cultivaram entre si também ajudou deveras.
 
“A reação inicial foi de prevenir o filho, mas não do bagulho. Sempre fui muito aberto com eles. A relação depois de um ano ficou muito tranquila mesmo”, diz. Vínculo tão aberto e tranquilo que os pais passaram a pedir que ele fumasse em casa. 
 
F. interrompe: “É um pouco daquilo que a gente estava falando: porque para comprar maconha a gente tinha que ir a locais que não estavam vendendo só maconha”. J. concorda. A questão revive a cada “Onde é que você está comprando?” de seu pai.
 
Ele se dedica ao cultivo doméstico tanto quanto para não lidar diretamente com o mercado ilegal, tanto quanto para se esquivar do estereótipo de financiador do tráfico. Os dois amigos perderam a conta de quantas vezes subiram morros e viram gente armada oferecendo outras drogas além de maconha prensada.  
 
É por questão de saúde também. Aos primeiros tragos, descobriu boa variedade de fumos e de gente que pratica o autocultivo. Recorda também que, de início, mesmo no comércio ilegal, conseguia “do solto”. Mas aos poucos o prensadão, mais fácil de acondicionar e, portanto, de burlar fiscalizações, dominou o mercado.
 
A diferença entre o natural e o prensado avultou. “Percebi que o que a gente fumava era uma porcaria, dola de cinco [reais], prensado de cinquenta gramas. Se a pessoa se conhece, sabe o que vai fumar”, diz. Dola é uma pequena bucha de maconha, com quantidade suficiente apenas para um ‘fino’, um cigarro de, digamos, acanhada espessura. Hoje uma dola contém em média entre dois e três gramas de maconha.
 
 “O que a gente fuma na verdade é a flor. Então tudo o que vêm além disso é lixo, não tem necessidade de fumar. No caso da maconha, que geralmente a gente pega aqui, prensada, vem com todo o resto que tiver na mata, inseto, galho, resto de qualquer coisa”, diz F.
 
O outro complementa: “Até acrescentam coisas químicas para render o bagulho. No haxixe [resina da flor da cannabis], até cera de depilação misturam com a parada. Como qualquer droga: se não é legalizada, não tem mercado e então você não tem controle. E se você não tem controle, fazem o que querem”.
 
J. evoca outra preocupação, não de todo usuário, mas de todo cultivador: ser denunciado à polícia. Ele sabe de amigos em cuja porta a polícia já bateu. O receio de plantar talvez seja maior que o de fumar: “O governo brasileiro não sabe diferenciar traficante e usuário”, diz.
 
Há muito aponta-se uma diferenciação vaga entre um e outro na Lei 11.343, de 2006, que trata do assunto e proíbe o plantio. O artigo 28 penaliza quem cultiva Cannabis para consumo pessoal com advertência, prestação de serviços comunitários ou medidas educativas. 
 
O problema mora na definição de consumo pessoal, obtida a partir de uma série de variantes: natureza e quantidade apreendida, local e condições da ação, circunstâncias sociais e pessoais, conduta e antecedentes do suspeito. Não há critérios objetivos. 
 
Em âmbito legislativo, 2014 se mostra a fim de discutir a regulamentação da maconha. Em fevereiro, o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) anunciou que fará a relatoria de uma proposta de iniciativa popular de regulamentação do uso protocolada em janeiro no site do Senado por André Kiepper, analista de Gestão em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz. No mesmo mês, o deputado federal Eurico Júnior (PV-RJ) apresentou projeto de lei propondo a legalização e regulamentação do cultivo e da comercialização.
 
Em março, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) apresentou a proposta até aqui tida como a mais avançada. Propôs uma “mudança de paradigma” nas políticas de drogas tupiniquins com projeto que regula a produção e venda de maconha e anistia os envolvidos com o tráfico de maconha. 
 
Na justificativa, o deputado pondera que o efeito incidirá diretamente sobre a qualidade da Cannabis, que deverá ser produzida conforme obrigatoriedade de registro, inspeção e fiscalização. A ideia é permitir que o usuário tenha ciência daquilo que consome.
 
O cultivo doméstico é um de seus objetos: aqui, o plantio, cultivo e colheita domésticos de Cannabis para consumo pessoal ou compartilhado em domicílio de até seis plantas maduras e seis imaturas, ou safra de até 480 gramas, serão isentos de registro, inspeção e fiscalização. Ainda sob condições específicas, o projeto também habilita o plantio, cultivo e colheita em clubes de autocultivadores (a criação deverá ser autorizada pelo Poder Executivo; número máximo de 45 sócios; entre outros).   


“O cultivo doméstico, atualmente proibido, é a maneira mais segura, prática e simples de acesso à maconha por parte dos consumidores”, diz a justificativa.
 
Fundada em 2002 e composta por agentes da justiça criminal do mundo todo, como delegados, coronéis, juízes e promotores, a ONG internacional Law Enforcement Against Prohibition (Agentes da Lei Contra a Proibição) condena as atuais políticas de drogas. Segundo a ONG, a tal “Guerra às Drogas” tem recrudescido os problemas sociais ao invés de remediá-los, razão pela qual advoga um sistema de regulação e controle.  
 
Juíza aposentada e diretora da Leap Brasil, seção brasileira da ONG, Maria Lucia Karam palestrou nesse sábado (3) para cerca de 200 pessoas na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), durante o Encontro Regional de Estudantes de Serviço Social. Nos quase 10 anos de atuação na justiça criminal do Rio de Janeiro, entre 1982 e 1991, absolveu todos os acusados por posse para uso pessoal. Não faz ideia de quantos: “Sempre rejeitei a denúncia afirmando a inconstitucionalidade das leis que proíbem”.


Maria Lucia considera legítima a reivindicação pela prática do cultivo doméstico ou a descriminalização da posse para uso pessoal. Mas são condutas que não atingem o cerne da questão. “É uma questão muito pessoal de quem quer consumir maconha, mas que não resolve a questão fundamental que são todas as graves consequências dessa política de proibição, dessa política de guerra às drogas”, diz. 
 
Ela também levanta um interessante outro lado dessa revindicação, a que classifica de egoísta e discriminatória: “É uma questão egoísta, que resolve o problema daquela pessoa que quer utilizar a substância. Também me parece não só essa coisa egoísta, que só resolve o problema pessoal, como uma coisa também discriminatória: ‘Ah, eu não vou entrar em contato com esses maus, que são os traficantes. Eu sou bonzinho, eu só quero fumar e tal’”.
 
“A questão importante é legalizar. Não tem que ficar com meias medidas”, crava. 



Militante canábico desde 2006 e um dos organizadores do já famigerado movimento que defende a legalização imediata da planta, a Marcha da Maconha, que no Espírito Santo acontece no próximo sábado (10) em Vitória, o cicloativista e artista plástico Filipe Borba vê um crescimento expressivo na prática do cultivo doméstico. 
 
“Acho que tem crescido bastante. Basta ver a Marcha da Maconha, que foi tomando uma proporção maior, o movimento do Growroom Brasil, fórum nacional em que o plantio é o carro-chefe e a questão do acesso à informação sobre plantio. A informações chegam mais fácil às pessoas”.
 
“Se você planta, você sabe a procedência. Hoje tem a questão das sementes, as pessoas vendem sementes pela internet e você já sabe o quanto de cada substância vai ter dentro daquela planta”, analisa.
 
Um exemplo desse interesse crescente deu-se na noite da última terça-feira (29), quando cerca de 100 pessoas se reuniram ao ar livre para participar de uma oficina de cultivo caseiro (foto abaixo). O oficineiro se surpreendeu; segundo ele, a divulgação fizera-se de última hora. “Legal. Isso está mostrando o interesse das pessoas em aprender a ter sua própria planta e não depender mais do sistema ilegal”.  

 


Aos 32 anos, ele pratica o autocultivo há 15, após enfastiar-se dos prensadões. Segundo ele, a diferença entre o natural e o prensado é enorme. “É como você tomar um vinho e saber que não está misturado com gasolina. É mais ou menos isso que o usuário comum sofre hoje, fumando uma coisa que pode ser muito perigosa”.
 
A cannabis natural é livre de contaminantes. O prensado não foi seco naturalmente. A prensagem é realizada mesmo com folhas ainda úmidas, gerando o ambiente ideal para a geração de fungos, o que vai decompor a planta. Sorver isso já não é saudável. A amônia, diz, que se pensa ser ingrediente extra, é produto do emboloramento. 
 
Os ingredientes extras podem ser qualquer coisa. Gasolina, por exemplo, para abafar o cheiro e burlar fiscalizações. “Quando você compra no mercado ilegal, nada é garantido do que você está fumando. Trazendo o mercado para uma maneira pessoal, você vai fumar uma coisa que talvez lhe prejudique a saúde em outros efeitos, mas garante que você não está pondo gasolina para dentro ou o que seja que eles podem misturar”.
 
E o prensadão era o único gênero que M. conhecia às primeiras bolas (tragos). Um dia faltou fumo, mas um amigo salvou a pátria com um solto, natural. M. apertou, acendeu e ao primeiro trago uma sensação nova inundou-lhe; nunca havia experimentado tal sabor, efeito e fumaça. As portas da percepção se escancararam.  Pensou: “Como é que ele tá com uma parada tão gostosa e eu com essa porcaria aqui?”.
 
O amigo era cultivador e lhe ofereceu um fruto do próprio plantio. Sem titubeios, começou a plantar no mesmo mês. Trocou uma ideia com o amigo, visitou sites, mergulhou em tutoriais. Hoje, aos 19 anos, quer distância daquilo que fumava quando começou aos 16.
 
Ele mora com os pais em uma casa com quintal e lá desenvolve sua subsistência. A ideia não foi acolhida imediatamente; ele botava uma planta em casa e ouvia um “tira isso daqui”. Mas não sucumbiu: o que mais fazia era colocar os pais na frente do computador para assistir documentários sobre o assunto. 
 
Entende perfeitamente aquela resistência inicial: “É um processo gradual mudar a cabeça de alguém, você não pode fazer isso do dia para a noite”. Após muito perorar, veio a anuência. Por que acha que eles aceitaram? “Eu costumava ser metido, chato e egoísta. Acho que eles foram vendo aos poucos que eu não iria ser um drogado que venderia a televisão deles por uma dola”. 
 
Mas não foi aí que os pais descobriram que ele fazia fumaça. Como ocorreu ao nosso primeiro personagem, foi por causa de uma batida policial. Ele ainda vivia a fase do prensado. Com um amigo, subiu um morro em Vitória atrás de uma dola e, chegando à boca, ouviu a pergunta: maconha, pó ou pedra? “É meio chato ouvir isso quando você vai comprar um beque”, diz. De lá, seguiram para a casa de um amigo pela orla. 
 
Quando atravessavam o acesso à Ilha do Frade, foram parados por dois policiais. Houve revista e encontraram duas dolas. Os amigos ficaram quase uma hora algemados na Praça dos Namorados recreando a curiosidade alheia. Era de tarde. Chamaram a viatura e os dois foram encaminhados dentro da gaiola para a Chefatura de Polícia. M. foi liberado às duas da manhã. Pegou o telefone, chamou os pais para buscá-lo. 
 
Ele conta outros dois desencontros com a polícia. Um, durante o aniversário de um amigo em uma praia na Ilha do Frade. De repente, uma viatura bateu e a pândega se desmantelou. Pegaram dois; o resto, correu, exceto o aniversariante, que nadou. Em Vila Velha, estava na casa de outro amigo, na Praia da Costa. Antes do desjejum, deu um pulo na praia. Foi pego quando voltou: uma ponta no bolso. Mas, acha, os policiais não estavam dispostos a despender tempo e energia por uma ponta. Foi liberado.
 
“Cara quem planta é justamente por saúde, uso próprio e sair dessa história de tráfico”, diz, que hoje planta no quintal e fuma na varanda de casa. O máximo que houve são gracejos da mãe: “Ó, o maconheiro aí”.

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