Quinta, 02 Mai 2024

Reportagem especialA maior arquibancada do Brasil

Reportagem especialA maior arquibancada do Brasil
Fotos: Agência Porã (Apoena Medeiros e Gustavo Louzada)
 
Uma voz abafada saiu à minha esquerda. Olhei e vi um policial pesadamente paramentado. “Avisa lá em cima que tá tranquilo”, disse, a cabeça engolida pelo capacete, ao cortejo que subia a Terceira Ponte no sentido Vitória-Vila Velha. Eram 22h30 de quinta-feira (20) e a mais impressionante manifestação de rua do Espírito Santo já tinha perdido boa parte de seus 100 mil entusiastas.
 
“Tranquilo” era um adjetivo que não caberia uma hora atrás, quando grupos específicos investiam ensandecidamente contra símbolos de poder judiciário - o Tribunal de Justiça e o Ministério Público do Espírito Santo (TJES e MPES) - legislativo - Assembleia Legislativa - executivo - carros de polícia - e político-econômico - Rodosol. Houve reação policial. Ao vivo, no feice, na TV ou no jornal, todos sabemos o epílogo. 
 
Vitória, cidade pouco habituada a humanizar suas ruas, vivê-las, sentir-lhes sob os pés, saber que nesta esquina eu vou encontrar um oiti, na próxima, um muro grafitado, na outra, um simpático pé-sujo. Os carros e a violência desencorajam. Veja a Enseada do Suá à noite: vazio, penumbra e silêncio. Talvez por isso muitos gostem do Centro.
 
Mas quinta-feira Vitória se reconciliou com suas ruas, pela reivindicação política e pela apropriação cultural. Não se sabe ainda exatamente por quê, mas aquele ato formou um formigueiro humano que se estendia em linha reta da Ponte da Passagem à Terceira Ponte. E também não se sabe ainda por quê, foi assim no resto do Brasil. 
 
Eram 17h30 quando o reluzente Corolla prateado parou ante o semáforo vermelho em frente ao Shopping Praia da Costa e dele saltou um adolescente com um cartaz enrolado nas mãos. Bateu a porta e correu atrás da multidão que iniciava os três quilômetros de chão da Terceira Ponte. 
 
A massa trajava predominantemente branco. A maior parte jovens entre 18 e 25 anos. Muitos estudantes de ensino médio. Muitas meninas maquiadas. Muitas em trajes esportivos. Alguns de bicicleta. Alguns de skate. Casais de mãos dadas caminhavam vagarosos, contemplando o entardecer (belo, aliás). 
 
Nos cartazes, Marco Feliciano e a Copa pareciam ser os alvos preferenciais. Muita autoexaltação (#ogiganteacordou, #vemprarua). Muitos desferindo críticas vagas à corrupção, à educação, à saúde. Muitos sabendo claramente o que reivindicar.
 
Os carros que vinham de Vitória deliravam, com motoristas ou sorridentes, espatifando a buzina sem descanso, ou concentrados, com a mão direita ao volante e a esquerda gravando tudo ao celular. As Hilux também deixavam sua buzinada de abono.
 
Quando alcancei a praça do pedágio, havia pouco o sentido Vila Velha fora obstruído. Olhei para trás e vi então a massa branca preenchendo as duas vias da ponte até o vão central. Ok. Fui para a César Hilal e tomei um ônibus para a Ufes. Ele no entanto parou na Rio Branco, na Praia do Canto: Reta da Penha interditada precisamente naquela altura.
 
Segui à pé até ao posto de gasolina em frente à Ufes. Mais gente de branco. Muitas paradas ao longo da avenida, parecendo aguardar a fatia principal da manifestação, com a qual finalmente cruzei. Estava em frente à Emescam. E mais gente de branco. 
 
A massa seguia compacta da Emescam até o viaduto da Ufes, a partir de onde se esvaía, só terminando de fato no postinho, onde ainda havia retardatários como uma mulher e seu cãozinho de lenço auriverde no pescoço.
 
Parei ainda na boca do acesso do viaduto à Jardim da Penha, onde um Fiorino estava estacionado. Era um carro de chope. “Tá atendendo às expectativas?”. Hesitou um pouco, mas cravou, satisfeito. “Tá sim”. 
 
Pronto. Finalmente o postinho. Hora de voltar e seguir o fluxo da multidão.
 


No país do Carnaval, claro que o bom humor autoirônico logo apareceria. “Nem só de pão vive o homem. Uma aposentada não consegue tomar cerveja em Jardim da Penha”, anunciava uma alegre senhorinha em trajes berrantes ainda no canteiro central da Fernando Ferrari.
 
Mais à frente, um adolescente com camisa do Rolling Stones acompanhado por um senhor (talvez o pai) mostrava um “Fora, Dilma” entre as mãos. Pouco após a descida da Ponte da Passagem, um coro infantil arrancou uma gargalhada geral: “Ão, ão, ão, a Dilma é sapatão”. Traquinagem de dois guris de no máximo 10 anos. Estavam de pé sobre o gelo baiano, ainda com os uniformes de uma escola municipal de Vitória.
 
Entre o viaduto da Ufes e o Shopping Boulevard da Praia, no final da Reta da Penha, a manifestação seguiu sem sobressaltos. Na Ponte da Passagem, manifestantes saudavam até avião em procedimento de pouso (“Uhuuuuu!”). Mas saudavam sobretudo e mais efusivamente os espectadores nas janelas e sacadas dos prédios com a exortação coletiva do “Vem pra rua, vem pra rua, vem pra rua!”.
 
Gritos frequentes pediam o piscar das luzes dos prédios, embora às vezes com certa rispidez: “Pisca essa porra aê, Petrobrás!!!”, gritou um rapaz, tênis Vans, a cara pintada e uma bandeira do Brasil às costas. Mas o imponente quadrado de vidro ficou impassível aos reclames do rapaz. O prédio da Federação das Indústrias do Estado do Espírito Santo (Findes), não. Até ele respondeu, embora com uma ou outra salinha.
 
Confesso que vi poucos cartazes com demandas, digamos, capixabas. A Associação dos Amigos da Praia de Camburi (AAPC), uma das entidades civis que cobraram da Assembleia Legislativa a instalação da finda CPI do Pó Preto, carregava uma faixa da Maratona Aquática Contra a Degradação Ambiental da Praia de Camburi. Um solitário ciclista cobrava do prefeito Luciano Rezende a instalação de mais ciclovias.
 
Não vi o tradicional mimimi capixaba - como acontece e aconteceu quanto às obras do aeroporto, os incentivos fiscais, os royalties, etc... 
 
A multidão deslizou jovialmente pela Reta da Penha, rejeitando a corrupção, condenando o atual estado de coisas com a saúde, a educação e a segurança, pedindo “Fora, Dilma”. O gigante painel de LED da Reta da Penha, já na Praia do Canto, era ovacionado a cada vez que uma peça do portal Sou ES exibia em fundo preto e letras cintilantes a famigerada hashtag: #VEMPRARUA. 
 


Impossível não divisar as frases-hit: “Enfia os 20 centavos no SUS”, “Japão, eu troco nosso futebol pela sua educação”, “Queremos escolas/hospitais no Padrão Fifa”, “Verás que o filho teu não foge à luta”. O repúdio à Cura Gay e ao Estatuto do Nascituro se mostrou forte. Vi cartazes preocupados com a violência contra a mulher. O que tinha de cartaz contra a PEC 37 não era brincadeira.
 
Em frente ao Shopping Boulevard da Praia, houve uma grande correria. Não vi o que houve, foi de repente e a reação veio no coro “Sem violência! Sem violência!” e com muita gente sentando para expor os desencaminhados (método argentino de protesto). Sólidas vaias às vezes emergiram ao longo da caminhada, dirigidas a quem se desviava das pretensões pacíficas do cortejo.
 
Cerca de três horas depois, entendendo-se do canteiro da João Batista Parra, atravessando a Duckla de Aguiar e alcançando o outro acesso à ponte, uma multidão de camisa branca e cara pintada estava cravada no chão, de pé, lábios entreabertos e olhos vidrados. Miravam as cabines da Rodosol.  
 
Tudo começou nas vidraças do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) e atingiu o ápice nas caixas coletoras da Associação Capixaba Contra o Câncer Infantil (Acacci). Coros conscienciosos - “Sem violência! Sem violência!”, “Sem vandalismo! Sem vandalismo!” - não apaziguaram ninguém. 
 
Voltando. Foi árduo cruzar o trecho de rua entre as praças do Cauê e do pedágio, onde a multidão, que até há bem pouco fluía sem percalços, agora se espremia. Entendi por que quando finalmente pisei a praça do pedágio e olhei em direção a Vila Velha: um mar de camisas brancas subia dali até quase o vão central da ponte. Pelo menos foi a impressão que tive na hora. Inacreditável. 
 
Tudo parecia tranquilo na região. Fui para a praça do TJ para ver se o clima lá era o mesmo. No caminho me demorei na linda apropriação que se fez do alambrado da Clovis Machado, revestido de cartazes, mas que, infelizmente, já não existia na manhã seguinte.   
 
Nem precisei chegar à praça do TJ para ver a primeira cena de correria. “Olha o choque!”. É mentira. Mas a pegadinha ocorreria ainda outras vezes, até ser verdade. As vidraças do TJ sucumbiam às pedras; às vezes um rojão estremecia as estruturas do prédio.  
 
Retornei para a ponte. Notei que muita gente parecia não fazer ideia do que se passava no TJ. Não tanto, porém: no parapeito da ponte, formou-se uma espécie de camarote para acompanhar o quebra-pau. A coisa começou a ficar realmente séria quando homenzinhos pretos e encapuzados surgiram na marquise do TJ.
 
Resolvi acompanhar tudo das cabines do pedágio e vi a polícia aos poucos ganhando terreno. Em questão de tempo, o “camarote” (que começava em frente à rua do TJ) se desfez. Os primeiros 500 metros da ponte viraram uma espécie de campo minado. Havia muita correria e muito estrondo.
 


Cenas da vida: num certo momento, enquanto manifestantes e polícia se confrontavam e olhos e gargantas se irritavam com o efeito moral das bombas, na rua, pouco antes das cabines, um carro de som mandava uma versão chiclete-com-banana de Brasil, do Cazuza. 
 
Os manifestantes foram acuados até que se abriu um vazio na subida da ponte; já não havia ninguém na Avenida Capitão João Brandão. Eu ainda estava numa das cabines quando ouvi fortes pancadas, seguidas por um jorro metálico. Uma a uma, as caixas coletoras da Acacci foram destruídas. 
 
Quando as forças policiais tomaram a praça do pedágio, já não havia mais tanta gente de camisa branca. Saindo da Duckla de Aguiar, grupos se esgueiravam pela curva da João Batista Parra temendo dos soldados enfileirados em frente ao pedágio. 
 
Mas não para seguir Enseada do Suá adentro. Sentavam-se na calçada e no canteiro. Sentei também. Havia a esperança de que a polícia liberasse a passagem e todos voltassem para Vila Velha pela ponte. Aos berros, um dos policiais mandava sentar os que ainda estavam de pé. 
 
Pouco depois um grupo mais próximo ao pedágio nos chamou com um movimento de braços. Finalmente. Ganhamos a ponte pelas cabines da Clovis Machado, vigiados de perto por homens fardados. Silêncio. Não sei se por medo, respeito, tributo ou agradecimento, mas boa parte do cortejo cruzou o pedágio aplaudindo a polícia. 

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