Sexta, 19 Abril 2024

Sonho realizado

Sonho realizado

Não cogitava republicar essa triste reportagem que fiz há mais de dois anos sobre o lendário boxeur Touro Moreno. Achava, à primeira vista, inadequada para um momento de total celebração dos feitos dos seus filhos Esquiva e Yamaguchi nos Jogos Olímpicos de Londres, na Inglaterra. 

 

Interrompi este texto, inclusive, para dar uma espiada na luta do Yamaguchi Falcão, que acabou levando a medalha de bronze após perder para o russo Egor Mekhontcev (3º colocado no ranking mundial). O irmão Esquiva Falcão, como todos viram, atropelou o britânico Anthony Ogogo mais cedo e vai disputar um ouro inédito para o nosso boxe em Jogos Olímpicos. Os feitos espetaculares alcançados por ambos - pugilistas fantásticos feitos e esmerilados pelo pai, numa época de adversidade total de sua vida - entram para a história do boxe brasileiro. 
 
A reportagem abaixo é de junho de 2010, quando o velho Touro ainda estava com 72 anos. Nessa época ele andava frustrado por não conseguir levar adiante o seu projeto de fazer pugilistas num bairro de extrema pobreza e tomado pelas drogas na periferia de Jacaraípe, Serra, município ao norte de Vitória. 
 
Pois bem, a reportagem retrata esse aparente fracasso, que, na verdade, deveria se destinar àqueles que não permitiram que ele transformasse o Espírito Santo e o Brasil num celeiro de grandes boxeadores. Adversidade que jamais atenuou sua paixão e nobreza pelo boxe. 
 
Reverenciado agora, ou melhor, só depois do êxito de seus filhos, é que passaram a reconhecer o seu devido valor. Houve um momento em que Touro esperava que o governo do Estado arcasse com a sua ida a Londres para estar perto dos filhos, orientando, como era desejo deles próprios. Mas não atenderam a esse simples pedido do lendário Touro Moreno. Porém, não é hora de procurar culpados.
 
Yamaguchi e Esquiva precisaram ir até Londres para reverenciar essa lenda viva do boxe.
 
 

Touro Moreno, lendário campeão dos ringues: 

pobre, mas firme e forte na luta pela vida



(Reportagem publicada em 12/06/2010)

Fotos: Rogério Medeiros




O lendário boxeur Touro Moreno (foto) fracassou na sua tentativa de criar, numa das periferias da Grande Vitória, uma academia para formar novas gerações de lutadores. O tráfico de drogas, no bairro escolhido para implantá-la, Guarani, na região de Jacaraípe, na Serra, não permitiu. Selou a sorte da academia logo aos primeiros meses de seu funcionamento. Um resultado injusto para alguém, como Touro, que marcou sua passagem pelo boxe, como também pela luta livre, pelo bom e salutar combate.


Ao alcançar a curva implacável e inexorável da velhice – 72 anos de idade –, o malogro da academia passou a representar a perda de sua última e decisiva parada no boxe, embora conte nele com três discípulos em ascensão: os filhos Tomaz Edson, Esquiva e Yamaguchi, todos de sobrenome Falcão, sendo que Yamaguchi andou perto de conquistar uma medalha no último campeonato mundial, em Milão, na Itália. Eles fazem carreira em São Paulo. E possivelmente ele possa, em breve, vir a contar, também, com os dois filhos menores: Estevam, de 12 anos (nome em homenagem ao grande boxeur cubano Teófilo Estevam) e Elielson, de 14 anos.


Com os quais, através do tempo, conta para zelar pela sua vitoriosa história no boxe. Já que, fora a glória, o boxe não lhe deu mais nada, muito menos dinheiro. Além de enfatizar que a vida no ringue é dura, como foi para si e será fatalmente também para os seus filhos, incluindo os dois menores. ainda em companhia dele e da sua atual mulher, Maria Olinda (foto), vivendo com eles numa improvisada e desconfortável casa no bairro Guarani, onde quis erguer a sua academia a céu aberto.


Além de Estevam e Elielson, estão, sob o mesmo teto com ele e a mulher, mais quatro filhos menores. Muita boca, como disse ao repórter, para comer com os R$ 465,00 mensais que recebe de aposentadoria. Ainda bem que não há despesa com aluguel de casa. O terreno, onde improvisou a sua casa e chegou a armar o ringue de sua academia, foi uma doação de um aficcionado do pugilismo, o juiz de direito José Rodrigues Pinheiro.


“Quando eu abri a academia, apareceu a meninada toda do bairro. Me entusiasmei e caprichei no preparo deles. Mas não passava um dia sem que  a polícia não levasse, por conta do tráfico,  de dois a  três meninos.  Fora os que vinham atrás de outros nas disputas pelo ponto de tráfico.  Geralmente armados. Desisti. Foi duro desistir. Meu plano era formar uma geração para a vida no ringue. Perdi essa parada decisiva, embora o ringue tenha sido para mim um estado de espírito”, a ponto de não lhe ter permitido enxergar o seu futuro.


O único dinheiro, além da aposentadoria, que viu, nesse tempo todo fora do ringue, foram R$ 3 mil que vieram de um documentário feito sobre a sua vida. Além do dinheiro, ele também ficou lisonjeado com o documentário. Sinal de que a sua vida no boxe ainda anda viva na memória do capixaba.  O cineasta Juliano Enrico foi quem dirigiu o documentário.


Essa sua precária condição de vida ensejou que o repórter pudesse aventar à hipótese de ele ser contemplado, pelos seus serviços ao boxe capixaba, com uma justa aposentadoria pelo Estado. Devolveu a sugestão com um ar severo, pedindo que fôssemos  em frente com a nossa  reportagem.


A sua reação embutia uma velada advertência de que não vestiria a roupa do coitadinho. O repórter, da sua mesma faixa de idade, enxergou, na sua reação, algo como alguém que não estava disposto a sofrer uma nova decepção, que, na linguagem do boxe, chama-se derrota. Pois outros, como ele, que se tornaram celebridades em suas áreas, foram totalmente ignorados e morreram na miséria, a exemplo de Zezinho, o Zé da Bola, craque de futebol capixaba que jogou nos grandes clubes do País e envergou a camisa da seleção brasileira. Não virou sequer nome de rua.


Mas tudo isso não o impede de continuar vivendo da nostalgia do ringue, com o seu imaginário de lutas. Pois continua fazendo exercícios físicos diários, levantando peso, e mantendo um corpo relativamente sarado. Em vão, naturalmente. Pois não há mais lutadores disponíveis, na sua idade, tanto no boxe como na luta livre. Sua última luta foi com outro veterano: Marcão. Não atraiu público. A imprensa deu pouca importância. Ele sentiu ali a premonição do seu fim no boxe.


Com relação ao desenfreado tráfico de drogas no seu bairro, o repórter teve oportunidade em verificar, ao vivo. Assistiu a um assassinato a 50 metros de onde se encontrava. Ocorrido num determinado sábado, em torno do meio-dia, mês de agosto, na companhia do filho Carlito (foto, que ali esteve, a pedido do próprio Touro, para recordar uma das suas maiores lutas (1971,  contra o invencível Rei Zulu). Carlito havia sido o juiz dela.


Voltando à cena do crime: à saída da casa de Touro, quando nos aproximávamos do carro para partir, passou um homem de meia idade, já um tanto pesado, pedalando uma bicicleta com dificuldade para alcançar uma velocidade necessária para fugir de uma perseguição. Atrás dele vinha um jovem, relativamente magro, aparentando não mais que uns 18 anos, numa outra bicicleta, e numa velocidade bem maior tentando alcançá-lo. Quando chegou nele, sacou de uma pistola e o alvejou. Depois, com ele já no chão, de cima da própria bicicleta, deu três tiros na sua cabeça. Na volta, pelo mesmo caminho da ida, de pistola em punho, passou apontando para as pessoas que estavam à margem da rua, como se pudesse estar ali a espreitá-lo  alguém do bando do traficante que acabara de matar.


Na hora, Touro Moreno, que nos havia conduzido até a rua, disse que situações como aquela ocorrem ali com freqüência. Como se obedecessem a um calendário próprio de confrontos entre as gangues. O episódio violento que havíamos acabado de presenciar nos fez temer pela sorte da família de Touro Moreno: oprimido pela sensação constante da fome e cercado pelo tráfico de drogas, onde a vida não tem qualquer valor. Mas, apesar desse inclemente quadro visto por mim e pelo meu filho Carlito, por incrível que possa parecer não abalou o Touro, acostumado no ringue a lidar com o perigo, assim como já havia também se acostumado com a derrota na sua própria história de lutas.


A presença do Carlito (foto), em sua casa, atendia a um pedido dele para repassar uma de suas mais importantes lutas, com o Rei Zulu. Que na ocasião era uma massa de músculos distribuídos em 125 quilos e em 1 metro e 95 centímetros de altura. Recordou a sua reação, por ocasião da luta, ao deparar-se com Zulu no ringue: “Quando olhei para aquele negão na minha frente, que mais parecia uma armário de aço, disse para mim mesmo: é hoje o meu dia. Prevendo o pior, o Yamaghuchi, em cuja academia eu fazia meus treinos de solo, sabiamente colocou o Carlito, que também pertencia a nossa academia, como juiz da luta.”


Deu a entender que a luta tinha cartas marcadas. Eu quis saber se era realmente isso. Ele respondeu que não era bem assim. Começou a explicar a necessidade do Carlito como juiz na desigualdade de um lutador para o outro. “Eu também tinha boa musculatura. Mas com 1 metro e 70 de altura, eu era, ali, diante do Zulu, um cachorro pequenez diante de um tigre. Não que não tivesse enfrentando outras paradas indigestas e vencido. Mas esse era diferente, pois, até então, ninguém tinha vencido o Zulu. E ele veio para lutar comigo por conta da  surra que eu havia dado em Waldemar Santana, outro grande da luta livre no Brasil.”


Nessa altura do relato da luta de Touro, chamei também o Carlito para a conversa. E quis saber da sua versão dessa luta, provocando-o: “Como é que foi essa marmelada?”


“Era realmente desigual” – reagiu, justificando sua condição de juiz parcial. “Encarar o Zulu era um passaporte para o nocaute. Ainda mais quando olhava para ele comparando-o com o tamanho do Touro. Mais parecia uma luta entre um pigmeu e um gigante. Além de ser uma luta livre, com um do ramo, contra outro de outro modalidade, pois Touro é de origem do boxe. Mas Touro sempre supriu essa desigualdade pela sua incrível mobilidade. Só que com o Zulu não funcionzram os seus potentes jabs, que fizeram tanto efeito em outros adversários.”


O Zulu, segundo Carlito, imobilizou o Touro várias vezes. Numa luta programada para seis rounds, Touro não fez outra coisa que não fosse encontrar meio de fuga para não ir à lona.


“Até que o Zulu, lá pelo final do terceiro round, pegou Touro de jeito e deu, de cima para baixo, de mão aberta, uma cacetada na tampa da sua cabeça. Arriou o Touro. E ainda o  jogou em cima da platéia, que estava lá torcendo pelo Touro. Essa luta foi no Ginásio Wilson Freitas lotado. Para surpresa de todos, o Touro voltou ao ringue cambaleando, mas voltou incentivado pelo público. O gongo ajudou, batendo o fim do round. Quando ele soou para iniciar o quarto round, Touro passou por Carlito e pediu que ele controlasse a luta. Pois para Touro o tapa do Zulu funcionara como se tivessem instalado uma britadeira dentro de sua cabeça. Segundo avaliou, o tapa de Zulu  teve o mesmo efeito de um ensurdecedor tiro de canhão.


Carlito assegurou que naquela altura da luta passou a cozinhar, literalmente, o Zulu. O Touro grudava no Zulu para fugir da luta, e Carlito os separava com bastante lentidão, impedindo, com disse, que Zulu demolisse o Touro, como se acostumara a fazer com os seus adversários.  Nesse ritmo, Carlito levou à luta até o fim. Mas, ao levantar o braço dos dois, proclamando o empate, o Zulu, irado, partir para cima dele. Carlito, que tinha sido advertido de que Zulu costumava dar carreira em juiz, estava com um 38 na cinta. Botou a mão na arma e gritou para o Zulu: “Nesse seu peito largo, Zulu, eu não erro um tiro.” E pulou fora do ringue.


A visita do Carlito ao Touro foi um bálsamo para o veterano lutador. Foram colegas de academia e de boemia. O Touro sempre foi amarrado numa cerveja. Fizeram algumas farras juntos. Confessaram-se também mulherengos de carterinha. A ponto de apostarem em quem casou mais e quem fez mais filhos. Em matéria de casamento, Carlito levou vantagem: cinco contra três do Touro. Mas, em matéria de filhos, Touro ganhou: 11 filhos contra 8 do Carlito.


Apesar da reverberação constante da derrota no ambiente de Touro Moreno, o encontro com Carlito o fez recordar-se de um dos maiores momentos da sua carreira, quando resistiu ao maior lutador da história da luta livre deste País. A visita mexeu com o seu ego, e o ego sempre foi o centro da estrutura de um lutador. Mesmo em condições adversas, era um momento de nostalgia. Foi possível vestir mais uma vez, mesmo que de maneira fictícia, o manto de vencedor.


Por fim, uma inusitada surpresa à saída do repórter na sua última ida à casa de Touro Moreno: a abordagem de um filho de Touro, de nome Luciano, de 10 anos. Agarrado a uma bola de futebol, pediu, para si, na reportagem, um registro como jogador de futebol. Não queria se confundido com os demais irmãos, que optaram pelo boxe. Açoitado, talvez, pela tormenta que o boxe levou à sua família. Algo inquestionavelmente mórbido para um pai que idealizou fabricar um Muhammad Ali  na sua família.

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