Quarta, 15 Mai 2024

Vá de bike

Vá de bike

Fotos: Gustavo Louzada



Um pavoroso engarrafamento fez o artista plástico Filipe Borba prometer a si mesmo: a partir de amanhã, trabalho, só de bike. Era 2007, ele morava em Vitória, trabalhava em Carapina (Serra) e pedalar para o trampo ainda era um estorvo. Mas não se furtou à promessa. “Após a primeira experiência gostei muito e adotei a bicicleta para ir ao trabalho todos os dias”, festeja. 



A bicicleta não é a salvação de Vitória. Mas a salvação também dá suas pedaladas. As eleições deste ano são simbólicas para o tema. Nas principais cidades do país, qualquer candidato tem na ponta da língua uma proposta para as bicicletas. Vitória não fica atrás, boa vontade não falta. Se os novos prefeitos suplantarem a distância entre a boa vontade e a ação efetiva, nosso paradigma cicloviário dará um grande salto.
 
Atente-se para os números do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Em julho de 2010, Vitória tinha 158.453 mil veículos; no ano seguinte, eram 167.197 veículos. Em julho de 2012, o Denatran registrou uma frota de 174.674 mil veículos. 
 
Em dois anos, as vias de Vitória receberam mais 16 mil veículos. Por mera curiosidade, voltemos dez anos: em 2002, Vitória tinha 97.613 mil veículos. Conclusão: a tendência é mesmo de crescimento. Nesse ritmo, não há cidade que aguente - muito menos os singelos 94 quilômetros quadrados dessa prazenteira ilha. 
 
Divulgado na quinta-feira (20), estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizado em nove regiões metropolitanas brasileiras mostra que os moradores destinam cerca de 15% da renda com transporte urbano. O gasto com transporte privado é em média cinco vezes maior do que com transporte público nas viagens diárias. 
 
Embora não esteja incluída nas regiões pesquisadas, pode-se dizer que Vitória sente de modo semelhante os efeitos da equação apresentada no estudo. Some-se o aumento de renda de famílias de menor poder aquisitivo ao barateamento do acesso a carros e motos (preço e gasolina) e à degradação do transporte público.
 
Resultado: por um lado, fuga dos “transcois” da vida e, por outro, mais transporte privado nas ruas. Quem ganha com isso são os engarrafamentos. 
 
Aqui entra a bicicleta. Nos últimos anos, a magrela transcendeu atividades a que tradicionalmente é associada - esporte, lazer e meio de transporte de trabalhadores de baixa renda - para ser tratada como alternativa ao caos do trânsito. 
 
Alternativa e não a cura: segundo especialistas, esta passa pela restrição ao uso do carro e, sobretudo, pela qualificação do transporte público. Pontes e avenidas mais amplas são medidas com data de validade marcada.
 
Há cinco anos ela é o principal meio de transporte de Borba. Além de artista plástico, Borba também é cicloativista. Também desde 2007 ele milita na Bicicletada, movimento coletivo e, bem ao gosto dos novos tempos, sem líderes. Com ramificações em todo o país, a Bicicletada divulga a bicicleta como meio de transporte. Seu slogan: Um Carro a Menos.
 
Desde o dia 29 de agosto Borba está na Europa para uma residência artística. A despedida dos amigos deu-se dias antes com uma exposição/intervenção artística no Bar Cochicho da Penha, em Jardim da Penha. Via-se que em Borba arte e bicicleta se encontram. E não apenas pelas bicicletas estacionadas em frente ao Cochicho. 
 
Em seus desenhos, seres bizarros de olhos esbugalhados e bocas escancaradas formam um microcosmo de tumulto e desespero. “Acredito que a arte tenha muito a ver com a percepção de mundo. Ao andarmos de bicicleta temos uma relação mais próxima com o ambiente e com as pessoas. Dessa relação próxima entre pessoas e ambiente (rua) é que vem a maioria das inspirações”, diz.
 
Também em Jardim da Penha encontramos um gesto de apoio à causa bicicleteira. Diogo Cypriano, dono do Birita, bar dos mais movimentados na Rua da Lama, bancou do próprio bolso o que mais falta em Vitória: bicicletário. Para ele, o investimento não pesou no bolso. “Custou R$ 500. Acho até legal você colocar isso. Não é muito caro e tem retorno em publicidade”, diz.
 
A ideia foi dele mesmo. Morador da Praia do Canto, Diogo anda muito de bicicleta. Tem duas. “Em todos os locais viáveis para andar, eu resolvo minha vida de bicicleta”. A sugestão do bicicletário veio dos amigos universitários, que empilhavam bicicletas nas árvores. 
 


Como meio de transporte, a bicicleta sempre foi associada à cultura operária. Talvez como resposta aos discursos de sustentabilidade e num movimento por uma nova lógica de mobilidade, vem caindo nas graças de uma faixa social de maior poder aquisitivo - e não apenas para desfilar pela orla de Camburi. 
 
Essa mudança cultural foi captada pelo principal centro de consumo de Vitória. Por meio de assessoria de imprensa, o Shopping Vitória diz: “A capital do Estado tem se esforçado para ampliar sua malha de ciclovias, sendo assim, é natural que o Shopping Vitória passasse a oferecer um espaço para atender aos clientes que desejam utilizar a bicicleta como meio de transporte”. Desde julho o shopping ostenta um bicicletário com 70 vagas.
 
No entanto, Vitória ainda é hostil com seus ciclistas - seja ele o trabalhador que antes das 6h atravessa as Cinco Pontes, seja a doméstica de São Pedro que labuta na Praia do Canto, seja a rapariga de Jardim da Penha que estuda na Universidade Federal do Estado (Ufes), seja o operário que mora na Serra e às 7h está em Jardim Camburi para erguer prédios. 
 
E nem aludimos à falta de uma malha cicloviária bem estruturada. Isso é clichê, um infortúnio sabido e compartilhado por ciclistas da base e do topo da pirâmide. 
 
Para o Borba cicloativista, a bicicleta ainda se ressente de problemas dos mais básicos em Vitória. A falta de educação no trânsito, de cidadãos e poder público, é o maior deles. “O não conhecimento da lei por parte dos cidadãos faz com que muitos se irritem com ciclistas. E infelizmente o poder público é conivente, pois apesar da lei proteger o ciclista, pouquíssimas ou nenhuma multa são aplicadas ao motorista que a desrespeita”, critica.
 
Segundo o Plano Diretor de Transporte e Mobilidade Urbana da Cidade de Vitória, alentado documento da prefeitura que reúne levantamentos realizados em 2006, são realizadas em Vitória 22.835 viagens de bicicleta por dia (incluam-se as intermunicipais). Trabalho e estudo motivam 80% delas (50% trabalho e 30% estudo).
 
A Reta do Aeroporto, as Cinco Pontes e a Avenida Norte Sul são tradicionalmente as portas de entrada de Vitória para as bicicletas. O trabalho é a causa principal. São pessoas que não moram, mas ganham a vida na capital. O movimento começa cedo - entre 5h e 6h - e traz majoritariamente trabalhadores da construção civil (que vêm da Serra) e comerciários (que vão para o Centro). 
 
Dentro de Vitória, o fluxo começa no mesmo horário. Mas aqui o gênero é outro. São muitas mulheres - profissionais de limpeza, empregadas domésticas, diaristas - que saem da região de São Pedro e se distribuem para a Praia do Canto e Jardim da Penha. 
 
Há de se destacar o bairro de Maria Ortiz, talvez um dos que mais se transformou em Vitória. A localização, estratégica para quem quer trabalhar na Serra ou em Vitória, impulsionou um sensível aumento populacional. 
 
Daí nasceu outra movimentação interbairros: logo cedo, trabalhadores deixam motos e bicicletas na Praça de Goiabeiras e seguem de ônibus para suas ocupações. A praça virou um ponto fundamental de pequenas escalas.
 
Vitória hoje tem 29 quilômetros de ciclovias. Outros 26 quilômetros estão para ser implantados. Há ainda mais 13 quilômetros de projetos.  É uma rede relativamente extensa, porém, eis seu grande pecado, desarticulada. 
 
Três pontos podem redimir a malha atual e todos estão previstos no Plano Viário Municipal, que prevê a implantação de um anel cicloviário ligando os principais corredores. Primeiro: a ciclovia da Avenida Leitão da Silva ligando as avenidas Maruípe e Fernando Ferrari com a Beira-Mar. 
 
 
Outro: a ciclovia da Avenida Rio Branco. Esta tem pela frente a impopular medida de remoção de estacionamentos. Por fim, a da Rodovia Serafim Derenzi, que no futuro vai permitir a ligação com a Quarta Ponte, comunicando Vitória e Cariacica.
 
A chegada da Primavera foi saudada pela festa Pindorama, realizada quinta-feira (20) no Espaço Celebration, em Jardim da Penha. Todas as quintas, homenageia-se uma lenda da música nacional; já passaram por lá Chico Buarque, Caetano Veloso, Rita Lee, Tim Maia, entre outros. Não há bandas, apenas DJs botando som. Dá bastante gente.
 
Na seção de divulgação da festa no site da Antimofo, produtora que organiza a Pindorama, há uma gentil sugestão aos internautas: “*vá de bicicleta* - Espaço seguro para bicicletas, traga seu cadeado e divirta-se”.
 
E o pessoal vai mesmo. Não é raro encontrar bicicletas amparadas nas paredes ou árvores do Celebration. Tanto que já foi instalado um bicicletário com dez vagas. Outro será instalado em breve. Serão ao todo trinta vagas.
 
Um dos sócios da Antimofo, o DJ Rike Soares explica que a demanda pelos bicicletários nasceu do estilo da festa e pela consciência ecológica: “Os frequentadores das festas de música brasileira possuem uma visão de sociedade sustentável aplicada, em que o transporte individual é a bicicleta. Cabia à produtora só fornecer a estrutura. O resultado tem sido ótimo”.
 
Bicicleta é lazer, bicicleta é esporte, bicicleta é trabalho, bicicleta é estudo, bicicleta é cultura, bicicleta é música. Bicicleta é diversão. Edson, Gustavo, Iriny, Luiz Paulo, Montalvani: o recado está dado. 
 


Entrevista: Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá 
 
Há quem acredite no carro. Enrique Peñalosa acredita no ser humano. O ex-prefeito de Bogotá (1998 - 2001) crê que a saída para os engarrafamentos está na restrição ao uso do carro: “Se queremos que haja menos tráfego, não podemos facilitar o uso do carro”, disse ele a Século Diário. “Aqui estamos falando da vida dos seres humanos”.
 
Ele também deposita suas esperanças de um trânsito melhor nas bicicletas: “No futuro, espero que as ciclovias, em todas as ruas, sejam vistas não como um simpático detalhe arquitetônico, senão como um direito”.
 
Hoje um respeitado consultor nas áreas de trânsito e urbanismo, Peñalosa iniciou a implantação do Transmilênio, sistema de ônibus rápido da capital colombiana. Para as bicicletas, Bogotá fez mais 300 quilômetros de ciclovias. 
 
Enrique Peñalosa esteve em Vitória no último dia 4 como principal convidado do seminário Mobilidade Urbana é Solução, promovido pela Rede Vitória. Ao final de 50 minutos de palestra, ele trocou uma ideia conosco sobre a relação bicicletas/mobilidade urbana. (Henrique Alves) 
 
Mais especificamente, qual o papel das bicicletas? 
 
Penso que mobilizar-se em bicicletas é quase uma forma mais eficiente de caminhar. E portanto eu diria: é quase um direito humano básico de poder se mobilizar com segurança. Um dos direitos fundamentais do ser humano é o direito à mobilidade. Mas, claro, tem que ser uma mobilidade sem risco de que o matem.
 
Para muitos cidadãos no mundo, ou porque não tem recursos, ou porque são jovens ou crianças e não têm a possibilidade de andar num automóvel, a única alternativa de mobilidade individual é uma bicicleta. E, portanto, eles devem ter o mesmo direito a mobilizar-se com segurança, sem risco que os matem, como alguém que vá no automóvel. 
 
No futuro, espero que as ciclovias, em todas as ruas, sejam vistas não como um simpático detalhe arquitetônico, senão como um direito, como hoje vemos as calçadas. E, além disso, as pessoas que se mobilizam em bicicletas, fazem uma grande contribuição à sociedade, porque gera menos tráfego, menos poluição, e portanto a sociedade deveria premiá-los, facilitando sua mobilidade segura e os estacionamentos.
 
Sobre o que foi apresentado no início, sobre o plano de mobilidade urbana da Grande Vitória, mesmo tendo sido uma apresentação muito rápida... O senhor tem alguma coisa a comentar?
 
Não, eu não posso fazer comentários sobre Vitória. Mas há alguns princípios gerais. É importante que, se queremos que haja menos tráfego, não podemos facilitar o uso do carro, com vias maiores ou mais pontes, etc... Então, seria interessante pensar, por exemplo, que no futuro, as pontes sejam apenas para ônibus, bicicletas e pedestres, mas não para carros. 
 
É indispensável para que haja menos tráfego, que temos que restringir o uso do carro. E a maneira mais fácil de restringir o uso do carro é restringindo o estacionamento. Amplie a calçada, para ter calçadas mais amplas ou ciclovias e elimine o estacionamento. É bom recordar que estacionamento não é um direito constitucional. 
 
Há um problema grande que vi aqui em Vitória, como em Bogotá: muitos edifícios têm estacionamentos no primeiro piso. E as pessoas caminham na frente de carros estacionados ou muros e paredes. E isso não é nem seguro nem agradável.
 
O senhor que foi prefeito, como contornar, como solucionar, uma medida tão impopular que é tirar os estacionamentos para instalar ciclovias, ampliar calçadas...?    
 
É importante explicar às pessoas, primeiro, que irão receber algo em troca: calçadas, ciclovias, etc... Segundo explicar que é uma maneira de reduzir os engarrafamentos. E que as pessoas comecem...
 
Uma negociação também entra aí?
 
Não apenas negociação, senão que as pessoas comecem a ver, a imaginar como pode ser uma cidade mais amável, mais agradável para se viver. Aqui estamos falando da vida dos seres humanos, da sua vida, de cada dia de vida. Como fazer com que sua vida seja mais feliz? Se creem que serão mais felizes dando mais espaço aos carros que às crianças, bom. Mas que tenham claro que cada decisão tem um custo.

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