Segunda, 29 Abril 2024

A guerra privada

Ligo a televisão e só falam em guerras, obras inacabadas, verbas desaparecidas, assaltos e feminicídios. Mudo de canal e só tem filme de horror e/ou pancadaria. Vou pro fogão e queimo o feijão, talvez um gesto inconsciente de protesto pela eliminação coletiva do bom senso e do bom tempo. Mudo de canal e a reportagem mostra um país onde dois milhões de pessoas não têm banheiro dentro ou fora de casa. Votou na Índia? Errou! Isso acontece no Brasil de grandes vitórias nos campos de futebol, com jogadores ganhando em euros.

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Nos meus tempos de professora primária passei por escolas sem banheiro ou com banheiros lá no fundo do quintal. Com chuva ou sem chuva. Quanto tempo tem isso? Perdi a conta. A Índia fez uma campanha recente, "Índia limpa", para eliminar o problema das necessidades fisiológicas eliminadas a céu aberto. Não eliminou, mas diminuiu, dando incentivos para a construção de privadas privadas e construindo banheiros públicos. Mesmo assim, tem locais com um banheiro para 1.400 pessoas! Esse país de contradições tem mais celulares do que banheiros.

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Ouço explosões e corro, assustada - o Hamas invadindo Miami? Impossível, mas nunca se sabe. São apenas fogos de artifício comemorando o lançamento da pedra fundamental de um novo edifício de apartamentos. Pela localização, percebo que vão eliminar minha vista para o lago - sempre cheio de patinhos vivos e artificiais. Os artificiais nadam ao sabor do vento, os vivos não nadam em paz, sempre receosos de serem sumariamente eliminados. Não que virem patos gratinados no cardápio de algum restaurante chinês, mas são levados para reservas.

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Pergunto aos vendedores de plantão quantos andares terá o novo edifício e me dizem que serão catorze - o que significa 13 - o número do azar foi eliminado do calendário oficial. "Se pusermos 13º andar ninguém compra, informam a essa reportagem. Pergunto se ninguém ali sabe contar e me eliminam da lista dos prováveis-compradores. Correm boatos de que os States vão eliminar as próximas eleições presidenciais, na impossibilidade de eliminarem Trump do cardápio eleitoral. Biden ficaria no poder até morrer ou até Trump morrer, o que acontecer primeiro.

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Se os Bons-Tempos desapareceram de vez do nosso dia-a-dia, o bom tempo também está sendo gradativamente eliminado dos calendários oficiais. Já não se fazem tempos como antigamente, com as estações do ano obedecendo aos rígidos princípios estabelecidos pela meteorologia. O tempo enlouqueceu, gritam todos, mas não queremos eliminar os culpados - que afinal somos nós mesmos. Se nos eliminamos coletivamente salvamos o tempo, mas então o que adiante ter bom tempo?

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Minhas pesquisas revelam outras razões para a catástrofe ambiental que se avizinha - a escassez de banheiros nos países menos desenvolvidos está provocando o aquecimento global em proporções que só agora estão sendo devidamente contabilizadas. Usando a Índia como bode expiatório, são 200 milhões de toneladas de substâncias tóxicas eliminadas ao ar livre por 2,6 bilhões de indianos todos os dias! O resto é o resto.

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Comentários: 1

João Jorge de Oliveira em Quinta, 11 Janeiro 2024 12:03

Excelente. Aliás todas as crônicas são de ótimas a excelentes.

Excelente. Aliás todas as crônicas são de ótimas a excelentes.
Visitante
Segunda, 29 Abril 2024

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