Sexta, 26 Abril 2024

A História soterrada

Quatro livros recém-lançados sobre fatos e personagens da época da ditadura militar – a caçada urbana ao chefe da ALN Carlos Marighella (1969), o sumiço de Carlos Alberto Soares de Freitas, preso na Casa da Morte de Petrópolis em 1971, o papel do Major Curió na guerrilha rural do Araguaia (1972/73) e a morte sob tortura do jornalista Vlado Herzog  em 25/10/1975 numa prisão militar em São Paulo – não deixam dúvida de que há voluntários engrossando o caldo preparado pela Comissão da Verdade em sua missão de levantar casos de violações dos direitos humanos durante o regime autoritário implantado em abril de 1964.



Se a morte de Marighella se enquadra no âmbito da luta armada em São Paulo e a guerra do Araguaia fez parte do mesmo processo em pleno sertão, os livros As Duas Guerras de Vlado Herzog, do jornalista Audálio Dantas, e Seu Amigo Esteve Aqui, de Cristina Chacel, recolocam no ar uma pergunta nunca assaz respondida: quantos “suicídios”, mortes “acidentais” e/ou desaparecimentos premeditados pesam sobre os ombros estrelados da ditadura?



A resposta definitiva talvez nunca seja encontrada, como até agora não se definiu a duração do regime autoritário. Para uns, terminou com a anistia de agosto de 1979; para outros, foi prorrogado por dez anos até a eleição presidencial direta de novembro de 1989; mas há quem diga que ele ainda está vivo e atuando nos porões da democracia.  



A tarefa do momento é levantar e apontar os malfeitos. Seu conhecimento e divulgação sem dúvida contribuição para suprir uma lacuna até agora não preenchida. Desde o pioneiro Em Câmara Lenta,  de Renato Tapajós (Alfa Omega, 1977), ninguém conseguiu até agora dar uma geral nessa história  sem fim. Quase todo mundo concorda, quem chegou mais fundo foi o jornalista Elio Gaspari. Escorado em relatos de auxiliares da ditadura, ele mostrou como os militares exerceram o poder.



À direita ou à esquerda, cada autor se preocupou em contar sua participação no jogo do poder, deixando de dar uma visão global dos acontecimentos. Em consequência, a maioria da população ignora que a ditadura militar desencadeou um amplo movimento de resistência que reuniu (e frequentemente pôs em atrito) o movimento estudantil, o sindicalismo, a igreja católica, a imprensa, a academia, a sociedade civil organizada (OAB, ABI), alguns partidos políticos e, também, os grupos de luta armada.



Evidentemente, todos esses movimentos de oposição tiveram seu contrário do lado governamental. À imprensa burguesa, hoje chamada A Mídia, se antepôs a imprensa alternativa. Para combater o pessoal da luta armada, a ditadura aperfeiçoou seus instrumentos de espionagem e vigilância, fez alianças internas (com empresários) e externas (com ditaduras vizinhas e a CIA), baixou decretos secretos (secretos até hoje) e deixou soltos os “crazy dogs” dos serviços secretos, até hoje protegidos pelas altas patentes.  Foi aí nos porões que se deram  os piores crimes.



Em 2014 vai fazer 50 anos que tudo isso começou. O que sobrou dessa luta desigual? Muitos livros, alguns filmes e um resquício de medo à passagem de veículos identificados com a repressão.  Como dizia Millor Fernandes, o preço da liberdade é a eterna vigilância.  



Olho vivo, quem nos governa por força do voto é uma ex-guerrilheira chamada Dilma Rousseff, a terceira mandatária presidencial oriunda da resistência à ditadura (os outros foram Lula e FHC). J



Olho vivíssimo, o maior partido originário de movimento de resistência, nascido há 30 anos de uma coalizão de exilados, sindicalistas e professores/intelectuais, virou uma sigla mais ou menos conservadora cujo principal bordão é sustentar o projeto de expansão da economia brasileira que os militares não conseguiram levar adiante.



Nesse processo de desenvolvimento capitalista neoliberal, a diferença é a inclusão social imposta por Lula e aprofundada por Dilma, que não disfarça seu gosto pelo exercício pleno do poder. Tanto que, desafiando o pensamento da hierarquia militar, criou a Comissão da Verdade, dando-lhe dois anos para apresentar sua versão da história. É o que veremos em maio de 2014.   



Bem antes do prazo final, vê-se que a Comissão da Verdade não opera sozinha no levantamento das violações da ditadura. A cada feira do livro cresce a estante de livros sobre episódios, fatos e figuras da resistência democrática à prepotência militar. Há também filmes e documentários. Quando a CV encerrar seu trabalho, o Brasil conhecerá uma história até agora parcialmente soterrada.



 



LEMBRETE DE OCASIÃO



 “Esta é a história dos vencidos. É importante que seja contada. Para isso está aí a Comissão da Verdade. Nada de sigilo. Tudo precisa ser divulgado”.



Cristina Chacel, jornalista, autora de Seu Amigo Esteve Aqui

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