Quinta, 28 Março 2024

​A morte lenta do sujeito do crime

A administração carcerária tem histórico de excessos no mundo inteiro. Na descrição de Michel Foucault, em sua obra Vigiar e Punir, fica muito claro que os segredos do isolamento social do cárcere facilitam os excessos: "Podemos bem ver o sinal dessa autonomia nas violências 'inúteis' dos guardas ou no despotismo de uma administração que tem os privilégios das quatro paredes". Lamentavelmente, embora a obra seja do século passado, continua atual e apropriada.

Valeria uma pergunta direta: por que um problema detectado há tanto tempo ainda perdura?

Para buscar essa resposta, busco fazer um exercício profundo de análise reflexiva: do comportamento da sociedade contemporânea em relação à delinquência, da pena de encarceramento e da função do cárcere em si. Naturalmente sem desprezar a construção e o estabelecimento da verdade, tema que abordei neste espaço em coluna do mês anterior, que por fim define o encarceramento.

Desde a formação do estado kantiano, o sujeito cidadão deixa de ser um protegido do Estado para ser seu subordinado. Ante a perspectiva de se sentir autor da lei, passa, portanto, a se submeter cegamente a ela, dentro do que Kant chamou de imperativo categórico ou "deves porque deves". Não importa se te fere ou prestigia, se é lei, cumpra-se!

Frente aos rumos que tomaram a nossa democracia, podemos dizer que o Estado existente não é justo, foi construído e teve suas leis formuladas naquilo que Platão chamaria de democracia degenerada ou demagogia, com "os sofistas" legislando e governando, com sua relativização da verdade. Tudo coerentemente ao que já foi dito.

Quando, a partir do século XVIII, foram extintos os castigos físicos e a pena passou a ser o encarceramento, restou o hábito impregnado no humano - ou desumano - do castigo e sua prerrogativa de vingança, só que, sendo exercido no fechamento silencioso das quatro paredes referidas por Foucault.

Estrategicamente, a sociedade se eximiu da existência desse chamado sujeito do crime, excretando os presídios para fora das áreas urbanas, como forma de intensificar a segregação, o que faz a sociedade cada vez mais omissa ao território do cárcere. Tudo isso sem entrar no mérito da criminalização da pobreza com um contingente de miseráveis encarcerados, muito mais pelas condições sociais de exclusão que por sua nocividade à sociedade.

Por fim, vale rever toda a função do cárcere, preconizada nos regulamentos, para aferir sua eficiência e eficácia ao que se propõe, como reeducar o criminoso, o que sabemos, pelo alto índice de reincidência, ser uma quimera.

Mas o fato é que temos uma população esquecida, em processo de emagrecimento e morte lenta, muitas vezes por redução no peso, qualidade e valor de suas refeições, mas também por uma condição de estar onde a morte sempre ronda. Seres que só encontram eco em seus familiares e nos organismos de defesa de direitos humanos, aos quais a sociedade, como um todo, prefere não perceber, quando não os criminaliza em conjunto com o sujeito do crime.

Somente o despertar para o pertencimento da sociedade na construção, em teu seio, do sujeito do crime exigindo sua consequente responsabilidade na solução do problema, principalmente com a visão de reabsorção de seu integrante o mais rápido e "melhorado" possível, poderemos começar a enxergar soluções que não sejam a construção de mais presídios.

Everaldo Barreto é professor de Filosofia

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