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A punição da desfaçatez

Um mea-culpa hipócrita, flagrante, de rematados poltrões

Depois da mobilização das redes sociais e dos protestos que tomaram as ruas, em todas as capitais do país, além de inúmeros municípios do interior, a PEC da Bandidagem, Proposta de Emenda à Constituição 3/2021, que pretendia ser uma carta branca para a impunidade parlamentar, e que tinha sido aprovada na Câmara dos Deputados, foi derrubada, por unanimidade, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal.

Tal derrota enterra a proposta, pois a decisão do colegiado, regimentalmente, impede recursos e votações no plenário. É o fim constrangedor de uma pauta patrocinada pelo Centrão, na tentativa de restabelecer regras que existiram na Constituição Federal entre 1988 e 2001, em que parlamentares só poderiam ser processados criminalmente com autorização prévia. No caso agora, portanto, todo processo desta natureza teria que passar pelo Congresso, e através de votação secreta.

Tal pauta casuística e repleta de desfaçatez foi pautada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), produto de um acordo feito por Arthur Lira (PP-AL), fiador do mandato de Motta no comando da Casa Legislativa, com bolsonaristas e com o Centrão, depois que estes fizeram, em agosto deste ano, um motim, tomando as mesas diretoras da Câmara e do Senado, em protesto contra a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), um ato apelativo de pressão para a anistia e a proteção de parlamentares perante ações do Supremo Tribunal Federal (STF), vítimas de uma suposta “perseguição política” pela Corte Suprema, discurso repetido ad nauseam no contexto do julgamento da trama golpista.

A PEC foi uma tentativa de barrar investigações contra parlamentares, sobretudo na questão das emendas, com apurações diversas que tramitam no STF. E a isso se somou o interesse de bolsonaristas na questão da anistia, principalmente do ex-presidente. O resultado foi um esforço conjunto de pautar a PEC, junto à urgência da anistia, com a ideia de levar o tema direto ao plenário, sem passar pelas comissões.

Entrou em questão a legitimidade do Congresso, dando ares de um processo constitucional para uma investida hipócrita de blindagem de parlamentares, no sentido de um sindicato profissional em que o casuísmo, mais uma vez, passa por cima do interesse público e de qualquer compromisso com a ética política, de espírito de Estado, de visão de futuro, em que o poder público se vê cada vez mais sequestrado por interesses particulares, quando não de corrupção e de formação de uma cleptocracia onívora.

A “nobre” missão da proposta de emenda constitucional, portanto, tinha objetivos como barrar investigações de desvios do famigerado Orçamento Secreto, por exemplo, que manietou o Poder Executivo Federal para se submeter aos caprichos do parlamentarismo branco do Centrão, em que o presidencialismo de coalizão, que dava certa previsibilidade na pauta governamental, foi derretido pelo clientelismo de feira de secos e molhados de políticos fisiologistas, que atuam como birutas de aeroporto, indo para onde o vento sopra, para a bocada ou o butim da vez.

Projetos alternativos foram aventados, em torno do debate de que a proposta original estava contaminada e havia um interesse em limitar a blindagem ou retomar o tema de revisão da dosimetria das penas dos envolvidos na trama golpista. Um exemplo foi o encontro entre o ex-presidente Michel Temer (MDB), o deputado Aécio Neves (PSDB-MG) e o relator do projeto de lei da anistia, Paulinho da Força (Solidariedade-SP), com participação remota do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), incluindo consultas telefônicas a ministros do STF. Em que, ao fim, Aécio propôs o fim da conversa em torno do projeto de lei da anistia e colocar em pauta uma PL da dosimetria das penas.

Além do enterro da PEC no Senado, o relator desta na Casa, Alessandro Vieira (MDB-SE), rejeitou todas as emendas sugeridas. Um dia depois das manifestações, o jogo em Brasília virou, e a repercussão no Legislativo foi imediata, com o presidente da CCJ, Otto Alencar (PSD-BA), marcando a proposta como primeiro item da pauta para o dia 24 último, em que a PEC foi anulada por unanimidade, sem possibilidade de ir a plenário, em obediência ao regimento.

Logo se desenhou uma cena patética em que todo aquele casuísmo e desfaçatez dos dias anteriores se tornou, rapidamente, um mea-culpa hipócrita, flagrante, de rematados poltrões, ação de ocasião, em que tiveram que recuar por força das circunstâncias, e não por valores intrínsecos, categóricos, tendo que pedir desculpas, no arrego parlamentar do ano, e diante do triunfo da opinião pública que, quando quer, manda no jogo, pois a cleptocracia, naturalmente, tem cagaço ao vislumbrar perder seu cargo e os benefícios de viver para “servir a população”.

A PEC da Blindagem derreteu e o projeto de anistia perdeu fôlego. Ou seja, o impacto foi duro e rearranja tudo o que já parecia precificado, sobretudo diante do açodamento da turma que, pelo visto, queimou a largada, e tiveram que dar a cara a bater, diante de uma opinião pública vigilante e ativa. Hugo Motta, por exemplo, foi desmoralizado nas redes sociais, e o bolsonarismo, por sua vez, agora está associado a essa tentativa falhada de juntar a pauta da anistia à PEC da Blindagem, enfrentando a impopularidade e a rejeição desta manobra que se configurou em desastre.

Por fim, os manifestantes apelidaram a proposta de “PEC da Bandidagem”, e o fim do PL da anistia também entrou na pauta dos protestos. Com o enterro da PEC pela CCJ, os bolsonaristas também se viram diante da impossibilidade de levar a plenário a pauta alternativa proposta pelos senadores Sérgio Moro (União-PA), Ciro Nogueira (PP-PI) e Damares Alves (Republicanos-PA), dando fim aos pretextos de impunidade parlamentar, para além de uma imunidade garantista já prevista na Constituição Federal de 1988.

O fim da exigência de autorização pelo Congresso para processos criminais contra parlamentares foi aprovada por Emenda Constitucional em dezembro de 2001, depois de vários casos escandalosos, como os de Hildebrando Pascoal, ex-coronel e parlamentar cassado que ficou conhecido no país como “deputado da motosserra”, quando foi acusado de chefiar a organização de um esquadrão da morte e condenado por homicídio, formação de quadrilha e narcotráfico, estando preso desde 1999, condenado a mais de 100 anos de prisão. Seu crime mais notório foi a morte do mecânico Agílson Firmino, cujo corpo foi esquartejado com uma motosserra.

E ainda teve o episódio notório envolvendo imunidade parlamentar que aconteceu em 1993, quando o governador da Paraíba, Ronaldo Cunha Lima, atirou contra um rival político, o ex-governador Tarcísio Burity, no restaurante Gulliver, em João Pessoa. Burity chegou a ficar em coma alguns dias e morreu quase dez anos depois do atentado.

E na História da República mais remota, ainda tem o caso do senador Arnon de Mello, pai do ex-presidente Fernando Collor que, em 4 de dezembro de 1963, na nova capital federal, Brasília, em uma briga disparou tiros de arma de fogo contra o parlamentar Silvestre Péricles, com o segundo disparo, no entanto, acertando o abdômen do congressista José Kairala (PSD-AC), que não resistiu aos ferimentos e morreu horas depois do tiro, no Hospital Distrital de Brasília. Kairala não tinha nada a ver com a briga entre os parlamentares Arnon de Mello e Silvestre Péricles.

Por fim, com o fracasso da PEC da Bandidagem, criou-se um racha entre os poderes legislativos da Câmara e do Senado, em que a Câmara se sentiu exposta, já que o Senado não apenas divergiu, mas “escolheu humilhar os deputados”, e mesmo se sabendo de um acordo entre Hugo Motta (Republicanos-PB), presidente da Câmara, e Davi Alcolumbre (União-AP), presidente do Senado, o primeiro evitou o embate público, e o fato é que este último recuou diante da resistência de Otto Alencar e, mais adiante, dos protestos populares.

E agora deputados ameaçam retaliar o Senado, demonstrando o baixo nível de relações, o elenco estarrecedor de interesses, a mesquinhez, o declínio existencial e valorativo, e o estado geral de pobreza de espírito em que afunda uma parte considerável da atual política parlamentar do país, em que se tem a constatação de que estes personagens não aprenderam nada com o episódio.

O republicanismo, portanto, é cada vez mais uma palavra vazia quando se trata dos conchavos, muitos feitos em convescotes de ocasião, a toque de caixa, na calada da noite, numa dramaturgia ridícula, decadentista, de uma política cada vez mais provinciana e pedestre. A consequência é que agora há um clima de tensão e de impasse entre as duas Casas Legislativas, em que líderes já citam uma espécie de “guerra fria”, em que votações podem ser travadas e contribuir para a instabilidade política nacional, misturada a esse empobrecimento vertiginoso do perfil parlamentar, uma vergonha.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog: poesiaeconhecimento.blogspot.com

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