Sábado, 27 Abril 2024

O ES é referência educacional?

O ministro da Educação, Camilo Santana, citou a rede estadual de ensino do Espírito Santo como referência de educação para o Brasil. Mas é, mesmo? Para responder essa questão, trago algumas evidências assentadas em dados empíricos e documentais coletados na pesquisa desenvolvida sobre a implantação da reforma do ensino médio no Estado.

Primeiramente, vale destacar que o Espírito Santo atende 81,3% das matrículas do ensino médio; 32,5% da segunda etapa do ensino fundamental (EF); e 6% anos iniciais do ensino fundamental, o que significa que, basicamente, a rede estadual atende a grande maioria das juventudes residentes no Estado.

De acordo com estimativas da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio Contínua (PNAD-C), no ano de 2021, os jovens de 15 a 29 anos representavam cerca de 21,7% (889,8 mil) da população do Estado. Desse total, cerca de 20,2% (179,7 mil) estavam na faixa etária de 15 a 17 anos, 45,5% (404,7 mil) de 18 a 24 anos, e 34,3% (305,4 mil) de 25 a 29 anos.

Desses jovens, 13,4% trabalhavam e estudavam; 35,6% só trabalhavam; 29,1% só estudavam; 21,9% não trabalhavam nem estudavam. Entre os jovens que não trabalham e não estudam, mas procuram emprego, mais de 13 mil jovens estão na faixa etária entre 15 e 19 anos, e, entre aqueles que não trabalham, não estudam e não procuram emprego, são mais de 23 mil jovens entre 15 e 19 anos.

Em síntese, os dados revelam que 36 mil jovens com idade entre 15 e 19 anos não estão estudando e, menos de 50% dos jovens capixabas (entre 15 a 29 anos) estão estudando. Isso significa que o Estado tem o desafio de ampliar a oferta do ensino médio, contudo, essa não é uma prioridade do atual governo, haja vista o modelo de implantação da reforma.

Quando a análise leva em consideração os dados do Brasil, Sudeste e ES, no período dos anos 2000 a 2019, nota-se que até o ano de 2012, a taxa de escolarização liquida no ES era superior ao Brasil e, a partir do ano de 2013 até o ano de 2019, passa a ser inferior ao país. O atraso escolar ao longo dos anos (2017-2021) no ensino médio capixaba está na faixa de 44,2%, sendo uma taxa maior quando comparada com o Sudeste, que é de 40,3%.

Em segundo lugar, o Estado vem investindo na política de ampliação da jornada escolar. Trata-se de uma meta prevista no Plano Nacional de Educação, indicando que o tempo escolar deve ser expandido para pelo menos 50% das escolas públicas. Grosso modo, é um consenso no campo educacional sobre os benefícios que o aumento do tempo do aluno na escola pode gerar. Mas, do ponto de vista da realidade socioeconômica da grande parte dos jovens brasileiros oriundos dos setores populares, representa uma forma de exclusão do ensino médio, dado o fato de que parcela significativa da população jovem do país trabalha.

Fato é que a expansão do tempo integral não veio conjugada com uma política para atendimento aos estudantes trabalhadores. Pelo contrário, concomitante à expansão de escolas com o tempo integral de sete horas e 20 minutos ou nove horas e meia, a comunidade escolar viu encerrar a oferta no turno noturno. No Espírito Santo, isso se deu em todo o Estado, não obstante a resistência de muitos movimentos encampados por vários segmentos da educação do campo e da cidade.

No Brasil, entre 1995 a 2020, temos uma quantidade enorme de escolas fechadas (total de 42,8 mil). Portanto, em meio à onda jovem (2003 a 2022) que deveria implicar na implantação de políticas públicas para o cuidado com essa população, os dados apontam para fechamento de escolas e não o contrário. Entre 2007 a 2020, foram 18,8 mil escolas fechadas, correspondendo a 44% da série. Essas porcentagens se referem às unidades escolares, não estando incluídos aí os dados de turmas fechadas que, sabemos, foram muitas. Ou seja, o período de 13 anos acumulou quase a metade dos fechamentos de escola numa série de 25 anos, o que revela ser uma política contínua adotada pelos entes da federação brasileira.

No Espírito Santo, o então governo Paulo Hartung (2015-2018) fomentou a ampliação do tempo integral em muitas escolas e também o fechamento de turnos escolares no período noturno. Os dados que confirmam essa realidade foram divulgados pelo ex-deputado estadual Sergio Majeski (PSDB): no período, foram fechadas 41 escolas estaduais e mais de 6 mil turmas, a oferta de vagas na rede estadual caiu de 497,4 mil para 282,9 mil, totalizando 214,5 mil vagas a menos, uma redução de 43,12% e 159 escolas da rede estadual deixaram de ter o turno noturno, conferindo uma redução de 44,4%.

Até hoje o governo Hartung é reconhecido como aquele que elevou o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do ensino médio para o mais alto patamar do Brasil. O que é ocultado, é que esse mérito foi alcançado porque só ficaram nas escolas aqueles que apresentavam as melhores condições para alcançar um bom desempenho nas avaliações de larga escala. Vale ainda ressaltar, que a rede de ensino médio do Espírito Santo é reconhecida por priorizar o treinamento dos estudantes para os exames nacionais, conforme constatado nas entrevistas realizadas com diretores escolares.

Em 2018, a rede estadual tinha 22 escolas de tempo integral; em 2021, em plena pandemia, 35 escolas passaram a ofertar o tempo integral. Em 2022, a oferta de educação em período integral foi ampliada para 75 municípios e 132 escolas. Ademais, as escolas estaduais que ainda não adotam o tempo integral, a carga horária diária é de 5 horas e 20 minutos, o que já expulsa muitos alunos, porque torna difícil conciliar com o trabalho e/ou estágio, pois resta um intervalo de 30 minutos entre a saída da escola e a entrada no trabalho/estágio, pensamento compartilhado por muitos diretores entrevistados.

A ajuda estratégica criada por esses diretores foi proporcionar uma sala com um aparelho de microondas, onde o estudante consegue fazer uma rápida refeição. Ou seja, a escola precisa criar estratégias para acompanhar a realidade dos nossos jovens, geralmente precária, porque a informalidade institucional e a desigualdade social marcam o processo educativo.

Essas poucas evidências citadas aqui fazem crer que os gestores da Secretaria de Estado da Educação (Sedu) têm trabalhado para reduzir o tamanho da oferta da escola pública no mesmo compasso em que o ensino tem como prioridade o treinamento dos exames e vem ofertando cerca de 700 itinerários formativos (!!!), com 18 escolas com oferta de apenas um itinerário, o que contraria a lei nacional. Ou seja, está sendo instalado um caos nas escolas, com um ensino com caráter essencialmente instrumentalista, mais voltado para o adestramento do que para a formação de jovens autônomos e inovadores (já que esta é a palavra da moda).

O NEM, implantado no Estado a todo vapor, sob o comando do atual secretário de Educação e presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Vitor de Angelo, é um exemplo da continuação dessa política que visa simplificar o processo educacional, reduzindo o conhecimento científico para as classes populares, estabelecendo/fortalecendo um mercado educacional e, ademais, excluindo os estudantes indesejados que não alcançam um bom desempenho nas avaliações.

Desde 2019, a Sedu instituiu vários instrumentos normativos voltados para instalar o NEM e para a educação em tempo integral. Em outubro de 2020, o Conselho Estadual da Educação (CEE) estabeleceu as normas para a sua implantação, as diretrizes curriculares em dezembro de 2020 e o currículo do NEM foi aprovado em janeiro de 2021. O NEM foi implantado de forma acelerada no Estado, em plena pandemia. Ainda mais grave, foi que essa implantação atropelou os gestores, docentes e discentes, que informaram à Sedu, por meio de pesquisa realizada em junho/2021 pela própria secretaia, o seu desconhecimento sobre os termos da reforma, os itinerários formativos e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Portanto, está errado o ministro da Educação, quando cita a rede estadual de ensino do ES como um modelo de sucesso. O Estado não é um exemplo de escola republicana que trabalha para a democratização do acesso e pela permanência de todas e todos com direito ao ensino de qualidade socialmente referenciada. Esses desvios de interpretação observados na gestão educacional reforçam a máxima de que a educação deve ser administrada com base em dados científicos e, com base em um projeto político-pedagógico definido coletivamente com/para os atores que vivenciam a educação pública no país.

É nessa esteira que a defesa da revogação da reforma do ensino médio ganha força. Essa reforma não traz investimento em infraestrutura nem uma política de valorização docente, e não favorece a oferta e permanência dos jovens oriundos das classes populares. Muito pelo contrário, a concepção da reforma é parte de um projeto conservador e excludente de escola pública, cujos dados científicos coletados em pesquisas já realizadas em todo o país apontam para a ampliação e aprofundamento da desigualdade educacional.

Em face aos retrocessos observados nos últimos anos, fica o apelo ao ministro e demais gestores estaduais, que reflitam sobre a educação a partir de bases assentadas na inserção emancipada das juventudes que vivem em uma complexa sociedade da era digital. O que, para tanto, temos experiências desenvolvidas no país que servem como exemplo que precisam ser consideradas e, também, mobilizar várias políticas públicas para garantir o direito à educação com qualidade socialmente referenciada, porque a escola não é um supermercado ou self-service e nem é um nicho de mercado.

A educação é fundamental para o desenvolvimento de uma nação soberana, portanto, é o tempo e espaço de construção dos conhecimentos científicos, das culturas, da compreensão e enfrentamento do mundo digital e dos encontros com o humano e nossa história. Quanto mais amadurecida for nossa compreensão do papel da educação na sociedade atual, menores serão nossas ilusões e maiores as perspectivas de ir traçando um horizonte mais promissor para a democratização e a universalização da educação, com base em princípios pedagógicos que têm o ser humano no centro e não os interesses do mercado. É o projeto de valorização da escola pública e do trabalho docente que esperamos de um ministro do governo Lula da Silva.

Eliza Bartolozzi Ferreira é professora e diretora da Pós-Graduação da Ufes e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais e da Rede Latinoamericana de Estudos sobre Trabalho Docente.

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