Sexta, 03 Mai 2024

As márcias que não vemos

Na manhã desta quinta-feira (19), no momento em que os ministério da Justiça e Saúde divulgavam a pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) - “Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas capitais do País” -, mais uma vítima da droga mais devastadora deste século era encontrada morta na Enseada do Suá, em Vitória. 
 
Márcia “Capeta”, como era conhecida, costumava pitar seu cachimbo de crack na marquise do prédio que abriga a Redação do jornal Século Diário, que fica a poucos metros do terreno onde o corpo foi encontrado. 
 
Márcia fazia parte de um universo de cerca de 370 mil pessoas que usam crack no Brasil, segundo a pesquisa da Fiocruz. Os dados detalhados do estudo por capitais ainda não foram divulgados pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), que encomendou a pesquisa à Fiocruz, mas os especialistas ficaram chocados em saber que 148 mil usuários (38,7%) estão no Nordeste. Havia uma suspeita que a maior concentração de usuários, em números absolutos, estaria na região Sudeste, puxadas pelas capitais mais populosas do país, São Paulo e Rio de Janeiro, que juntas têm mais de 17 milhões de habitantes. 
 
Os pesquisadores da Fiocruz, que fizeram um dos mais completos estudos sobre os usuários de crack nas 26 capitais brasileiras e no distrito federal, admitiram que a missão de mapear essa população “invisível”, como eles mesmos classificaram os usuários da droga, foi desafiadora. 
 
O termo “invisível” traduz com a precisão o perfil dessa população de “zumbis” que perambula em grupos pelas ruas da Grande Vitória. 
 
Os jornalistas de Século Diário, assim como outros trabalhadores e moradores da Enseada do Suá, seguramente devem ter cruzado pelo menos uma vez com Márcia, mas nunca a notaram. Afinal, ela faz parte de um universo de pessoas sem rosto, anônimas.
 
O sentimento da sociedade por esses anônimos é perturbador. Combina pena, culpa, medo e mesmo repugnância. Talvez por um ou vários desses sentimentos o rosto de Márcia tenha passado despercebido. Não só seu rosto, mas toda sua vida pregressa. A pedra simplesmente abduziu Márcia da sociedade. A partir do momento em que ela encontrou o crack deixou de ter passado ou presente. Futuro? Nem pensar. 
 
Só na manhã desta quinta, quando a polícia foi chamada para atender a uma ocorrência de homicídio, é que todos puderam saber quem era Márcia.
 
Uma familiar da moça apareceu para reconhecer o corpo desnudo e cruelmente ferido, que jazia em decúbito dorsal num terreno baldio. A parenta informou à polícia que aquele corpo franzino pela ação implacável da pedra pertencia sim a Márcia Soares dos Santos. Disse que a mulher tinha 34 anos deixava filhos, que há anos vinham sendo criados por familiares.
 
A familiar carregava uma foto da vítima, provavelmente da época em que Márcia ainda era “viva”. A foto exibia uma morena vistosa, com olhos grandes, sobrancelhas bem contornadas e lábios carnudos. Os brincos extravagantes revelavam uma mulher vaidosa. O corpo que jazia inerte à espera do rabecão nem de longe lembrava a Márcia do retrato.
 
Sobre a ocorrência, moradores vizinhos ao local do crime contaram à polícia que ouviram barulhos semelhantes ao de uma discussão. Ouviram também alguns gritos durante a madrugada, mas confessaram que ninguém tomou a iniciativa de acionar a polícia. Desumanos, insensíveis, egoístas? Em alguma medida, todos nós também somos. Afinal, quem de nós tem feito algo para salvar as márcias?
 
Até quando continuaremos ignorando essa população de “invisíveis”? Márcia precisou morrer para se tornar novamente Márcia Soares dos Santos.

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