Canção de Esquecer
Errar é humano, perdoar é divino, diz quem erra. Errar é fácil, perdoar é complicado, diz quem perdoa. Foi o que descobriu Giselda, que um dia cometeu um erro grave. Não de propósito, mas abusou do poder que o alto cargo na Construtora Morar Bem lhe conferia, e um trabalhador honesto e competente perdeu o emprego e os benefícios. Fez o que achou certo, mas se baseou mais em julgamentos precipitados que nas provas apresentadas no processo AR2341.
Anos depois, preparando os documentos para sua aposentadoria, Giselda depara com o tal processo mofando nos arquivos mortos, e vê claramente que foi injusta e intransigente. Não há nada que possa fazer para remediar o mal feito, mas a aposentadoria, ao invés de lhe dar prazer e alegria, lhe pesa na consciência e na alma. Alguém perdeu o privilégio de se aposentar por minha culpa!
Natal é tempo de reavaliar as ações passadas, boas ou más, mas como falar em paz e amor com esse peso na alma? Giselda pesquisa na Internet e localiza nome e endereço... Para quê? O que pode ser corrigido ou pelo menos remediado, depois de tantos anos? Não sabe ainda o que vai fazer, mas segue seus instintos. Talvez essa pessoa que nem conheceu esteja passando dificuldades... Talvez, de algum modo, possa recompensá-la pelo mal que lhe fez.
O bairro é pobre; a casa émiserável. Bate e uma menina maltrapilha atende, “Procuro por Alfeno Roverio”. A menina grita para dentro da casa, “Vô, tem uma mulher aqui!” A voz retorna como um eco envelhecido, “Então manda entrar, ora”. Entra e olha em volta – Um cômodo apenas, com uma mesa de bar e uma cadeira. Sem televisão. O homem na cadeira de rodas tem a barba crescida e o pouco cabelo já está totalmente branco. Tão velho assim?
Diz quem procura. “Sou eu mesmo, em que posso servi-la?” A menina senta no chão e assiste a estranha cena - Giselda parada no meio do cômodo sem saber o que dizer ou fazer, o homem olhando para ela, mais curioso que espantado com a visita. “A senhora é a nova assistente social? Mudam todo mês...” Giselda respira fundo, “Não, bem... é difícil explicar. Tudo por causa do Natal... O senhor não me conhece, mas cometi uma injustiça no passado e esse peso não me sai da consciência...
O homem sorri, “Não tem nada que um sincero pedido de desculpas não resolva”. Giselda o olha aliviada, “Acha mesmo?” e deixa as lágrimas rolarem. “Sou a pessoa que julgou seu caso na Construtora Morar Bem... Por minha culpa o senhor perdeu seu emprego”. O homem alisa o pouco cabelo, “Ah, águas passadas, não guardo rancores”. Giselda enxuga as lágrimas, “Gostaria de recompensá-lo... Não sou rica, mas...”
“Tudo vem pela vontade de Deus. Mas é natal e não tenho um presente pra neta. Se isso deixa a senhora mais feliz, compra um brinquedinho pra ela, e pronto”. Giselda olha a menina desnutrida, “Onde estão os pais?” “Só eu nesse mundo e não posso trabalhar. Mas tenho a bolsa família”. Giselda abre a bolsa e conta as notas, “Isso é para o natal. Vou mandar uma ajuda todo mês...” É o velho agora que tem lágrimas nos olhos, “Não precisa...” “Insisto...” “Deus a abençoe”.
Giselda vai embora, leve e satisfeita consigo mesma.”Feliz natal!” grita para o mundo, e distribui umas notas de cinco para os mendigos da rua. Lá dentro a menina continua no mesmo lugar,
olhando espantada para o avô. “Quem era, vô?” Ele olha mais espantado ainda para o bolo de notas em suas mãos, “Sei lá, menina, nunca vi mais gorda e nunca ouvi falar nessa tal construtora, mas deve ser Papai Noel disfarçado!”
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