Segunda, 29 Abril 2024

Canção de Esquecer

 

Errar é humano, perdoar é divino, diz quem erra. Errar é fácil, perdoar é complicado, diz quem perdoa.  Foi o que descobriu Giselda, que  um dia cometeu um erro grave. Não de propósito,  mas abusou do poder que o alto cargo na Construtora Morar Bem lhe conferia, e um trabalhador honesto e competente perdeu o emprego e os benefícios.  Fez o que achou certo, mas se baseou mais em julgamentos  precipitados  que nas provas apresentadas no processo AR2341.
 
 
Anos depois, preparando os documentos para sua aposentadoria, Giselda depara com o tal processo mofando nos arquivos mortos, e vê claramente que foi injusta e intransigente.  Não há nada que possa fazer para remediar o mal feito, mas a aposentadoria,  ao invés de lhe dar prazer  e alegria, lhe pesa na consciência e na alma. Alguém perdeu o privilégio de se aposentar por minha culpa!
 
 
Natal  é tempo de reavaliar as ações passadas, boas ou más, mas como falar em paz e amor com esse peso na alma? Giselda pesquisa na Internet e localiza nome e endereço...  Para quê? O que pode ser corrigido ou pelo menos remediado, depois de tantos anos? Não sabe ainda o que vai fazer, mas segue seus instintos.  Talvez essa  pessoa  que nem conheceu esteja passando dificuldades... Talvez, de algum modo, possa recompensá-la pelo mal que lhe fez.
 


O bairro é pobre;  a casa émiserável.  Bate e uma menina maltrapilha atende, “Procuro por Alfeno Roverio”. A menina grita para dentro da casa, “Vô, tem uma mulher aqui!” A voz retorna como um eco envelhecido, “Então manda entrar, ora”.  Entra e olha em volta – Um cômodo apenas,  com uma mesa de bar e uma cadeira.  Sem televisão.  O homem na cadeira de rodas tem a barba crescida e o pouco cabelo já está totalmente branco. Tão velho assim?
 
 
Diz quem procura. “Sou eu mesmo, em que posso servi-la?”   A menina senta no chão e assiste a estranha cena - Giselda parada no meio do cômodo sem saber o que dizer ou fazer, o homem olhando para ela, mais curioso que espantado com a visita. “A senhora é  a nova assistente social? Mudam todo mês...”  Giselda respira fundo, “Não, bem...  é difícil explicar. Tudo por causa do Natal... O senhor não me conhece, mas cometi uma injustiça  no passado e  esse peso não me sai da consciência...
 
 
O homem sorri,  “Não tem nada que um sincero pedido de desculpas não resolva”. Giselda o olha aliviada, “Acha mesmo?”  e deixa as lágrimas rolarem. “Sou a pessoa que julgou seu caso na Construtora Morar Bem... Por minha culpa o senhor perdeu seu emprego”.  O homem alisa o pouco cabelo, “Ah, águas passadas, não guardo rancores”. Giselda enxuga as lágrimas, “Gostaria de recompensá-lo... Não sou rica, mas...”
 
 
“Tudo vem pela vontade de Deus. Mas é natal e não tenho um presente pra neta. Se isso deixa a senhora mais feliz, compra um brinquedinho pra ela, e pronto”. Giselda olha a menina  desnutrida, “Onde estão os pais?” “Só eu nesse mundo e não posso trabalhar. Mas tenho a bolsa família”.  Giselda abre a bolsa e conta as notas, “Isso é para o natal. Vou mandar uma ajuda todo mês...” É o velho agora que tem lágrimas nos olhos, “Não precisa...” “Insisto...” “Deus a abençoe”.
 
 
Giselda vai embora, leve e satisfeita consigo mesma.”Feliz natal!”  grita para o mundo,  e distribui umas notas de cinco para os mendigos da rua. Lá dentro a menina continua no mesmo lugar, 
olhando espantada para o avô.  “Quem era, vô?” Ele olha mais espantado ainda para o bolo de notas em suas mãos,  “Sei lá, menina, nunca vi mais gorda e nunca ouvi falar nessa tal construtora, mas  deve ser  Papai Noel disfarçado!”

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