Sábado, 27 Abril 2024

Crime e castigo

Prefeitura de Alegre

Eu ainda criança, na minha alvissareira cidade de Alegre, curtindo meus doces primeiros sonhos, e de repente minha pacata Avenida Comandante Barata, hoje Rodriguez Alves, é abalada por um vândalo ou vândala jogando pedras nos telhados da vizinhanças. Muitas pedras, na verdade. Não pequenas, minúsculas pedras, como aquelas que se usava no jogo das cinco pedras, muito popular na época - mas grandonas, perturbando o sossego e quebrando as telhas. Isso em tempo de chuvas copiosas.


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Os ataques persistiram por dias e semanas, e não sei por que – ou ninguém me explicou - todos me acusavam do delito. Talvez porque as pedras nunca eram atiradas no nosso telhado, mas mesmo assim, tinha mais duas irmãs morando na mesma casa. As vizinhas me cercavam em suas portas quando eu passava – "É você, tenho certeza!" Meus pais me punham de castigo, "Se não parar com isso, vai ficar sem cinema domingo!"

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Cinema, naqueles idos, só aos domingos, condicionado a bom comportamento e boas notas. Na caderneta escolar as notas boas eram azuis, abaixo de cinco eram vermelhas. Quem tirasse muitas notas baixas era chamado de comunista. "Juro que não sou eu!" jurava eu, mas ninguém me ouvia. "Por que eu? Alguém viu pra me acusar?" Mas todos insistiam – "Só pode ser você!" E como as pedras continuavam caindo, meus pais me puseram de castigo na despensa, que com a lâmpada queimada ficava escura, mesmo durante o dia. A pequena janela pouco clareava, mas nos permitia ver os quintais dos vizinhos sem sermos vistos.

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E foi assim que assisti, estupefata, a vetusta vizinha, senhora bem casada e bem comportada, cheia de filhos já crescidos, se debruçando sobre nossa cerca para fiscalizar nosso quintal – vazio a essa hora da manhã. E não vendo ninguém, Boom! Pegou uma pedra numa pilha escondida em baixo do tanque e a atirou certeiramente no telhado oposto! Nem acreditei nesses olhos que a terra há de comer! Ou não, que talvez eu deixe uma ordem por escrito para ser cremada…ou canonizada, eternamente encerrada debaixo do altar de Santa Eduvirfes na igreja matriz de Alegre.

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Quase sem fôlego, atropelando as palavras, corri pra contar pra minha mãe – "Mãe, é a Dona X que tá jogando as pedras!" Mamãe ficou brava, "Deixa de ser mentirosa e volta já pro seu castigo!" Criança naquele tempo não tinha voz, não tinha crédito, não tinha vez. Mesmo assim ela foi pra despensa fazer plantão, esperando…Até que a respeitável senhora chegou para prarticar o esporte de atirar pedras no telhado alheio.

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Mamãe convocou as demais vizinhas, e na manhã seguinte nossa pequena despensa ficou lotada, uma reunião com bolo e biscoito de polvilho regados a suco de groselha – antigamente era o que se bebia: suco de groselha. As madames ficaram espremidas no pequeno compartimento, meio que duvidando mas esperando...como se espera o trem, o bonde, que bicho que deu no jogo do bicho, o resultado do campeonato entre o Rio Branco e o Comercial, o aumento do salário, o mundo acabar. Só que, diferente do aumento do salário que nunca chega, a vizinha por fim veio se exibir diante da incrédula plateia.

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Deixei bem claro que criança naqueles tempos não tinha vez nem voz. Portanto, a) ninguém veio me agradecer ou me enaltecer por ter solucionado o crime hediondo; b) ninguém me pediu desculpas por ter me acusado injustamente; c) ninguém me contou o que aconteceu com a vizinha. Cujo nome aqui não revelo, não por discrição, mas porque esqueci. Correram boatos de que o marido deu-lhe uma surra, mas continuando com meus castigos na despensa, nunca ouvi gritos vindos na casa ao lado.

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