sábado, junho 14, 2025
21.9 C
Vitória
sábado, junho 14, 2025
sábado, junho 14, 2025

Leia Também:

Damares Alves, Ayaan Hirsi Ali e os feminismos

Vou tentar não falar do óbvio. O intuito da discussão não é criticar as questões políticas da futura ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, tão pouco expressar um ponto de vista sobre sua experiência religiosa. Mas é preciso abordar algumas perspectivas do feminismo atual.  

Há uns anos, li a autobiografia de Ayaan Hirsi Ali, uma mulher somali, negra, ex-muçulmana e que sofreu mutilação genital na infância. Para fugir de um casamento, pediu asilo político e, posteriormente, tornou-se deputada na Holanda. Hoje sua principal pauta é a luta pela aplicação do Princípio da Dignidade Humana às mulheres mulçumanas. As descrições acerca desta nos remetem a um estereótipo que se enquadra perfeitamente naquela caixinha de um contexto ideológico: uma feminista.

No entanto, Ayaan tem recebido duras críticas de feministas americanas e europeias por ela se pronunciar relutante em relação a uma certa relativização da misoginia e opressão da mulher na maioria das sociedades islâmicas. Conforme Ayaan, as justificativas desse possível descaso do feminismo é declarar que a opressão sofrida pelas mulçumanas é a mesma em todos os lugares e que elas não necessitam ser salvas das condições impostas pela cultura e religião, já que seria um insulto ao seu modo de vida. 

Há também, em toda essa questão, um equívoco e um desalinhamento moral: o feminismo, comumente de esquerda, flerta com o multiculturalismo – fenômeno que evidencia e expõe a necessidade da pluralidade cultural, afastando-se do etnocentrismo – visão que considera seu grupo étnico acima dos outros. 

Para ser mais clara, o quiproquó está justamente em ser favorável ao multiculturalismo e, ao mesmo tempo, ao feminismo. Não que um contraponha o outro, porém, ao criticar os problemas que se referem às mulheres islâmicas em todo seu contexto de submissão, ocorre um choque com as ideias do multiculturalismo, que possui uma proposta de respeito à sociedade e cultura alheia.

Outro ponto de conveniência nesta discussão é referente a Damares Alves, que virou motivo de piada após visualizarem o vídeo em que ela diz ter visto Jesus em um pé de goiaba aos 10 anos de idade – lembrando que o contexto do vídeo não era político. A forma como algumas pessoas comentaramo vídeo, dentre elas algumas feministas, atribui à pastora a imagem de louca, histérica e desequilibrada; justamente como a direita e a mídia fizeram com a ex-presidente Dilma Rousseff, justamente algo que o feminismo tanto condena.

Lembrando que a questão da histeria foi, por séculos, uma doença considerada biologicamente feminina e muitas mulheres sofreram com choques, além de serem isoladas em manicômios. Sendo assim, qualificar uma mulher como desequilibrada ainda se constitui como um mecanismo de desmerecimento das capacidades emocionais das mulheres, estigmatizando-as como frágeis e instáveis. Zombar da experiência de Damares é um pretexto para tentar deslegitimar sua competência política, sem entrar no mérito se há ou não, é o típico argumento ad hominem.

Recentemente, Manuela D’Ávila, política brasileira de esquerda, se posicionou de forma verdadeiramente feminista ao se mostrar solidáriaà história de violência sexual que Damares Alves sofreu na infância. Atitude louvável frente a tantas chacotas. É difícil para os brasileiros entenderem que Ayaan, Damares e Manuela têm o mesmo objetivo nessa pauta: evitar que outras mulheres sofram violência e abuso. Mas possuem soluções, caminhos e perspectivas diferentes devido aos seus posicionamentos políticos e ideológicos.

Todo esse contexto só demonstra que o feminismo não pode ser usado como uma luta apenas partidária e ideológica. É preciso sororidade para que não ocorra julgamento prévio entre as próprias mulheres. O feminismo não pode ser relativizado. Ele precisa ser um movimento que escute todas as mulheres, independentemente de suas posições políticas, culturais ou religiosas.

Nesse sentido, as críticas a Ayaan Hirsi Ali soam como uma incoerência, tendo em vista que a deputada em questão está no seu devido lugar de fala – termo tão defendido pelas mulheres feministas – assim como Damares Alves também está, por ser mulher e ter passado por um trauma sexual.

É preciso entender que as vivências do outro pesam muito mais que ideologias cristalizadas. Pois, dessa forma, há o perigo de causar um silenciamento nas questões que envolvem outras mulheres, sobretudo, as do Oriente Médio e as que passaram por violência sexual, haja vista que ainda necessitam de voz e representatividade. Bom senso!

Mais Lidas