Sexta, 26 Abril 2024

​Depois da meia-noite

Alegre: antiga estação ferroviária
Quando criança, na casa situada no finalzinho da Avenida Rodrigues Alves, número 51 – a penúltima da rua - as luzes se apagavam às nove horas, seguindo os rígidos princípios de então. Não havia apelo ou rebeldia que mudasse esse ritual – a casa afundava em trevas e mistérios, mesmo se dormíamos com as janelas escancaradas. Isso em casa baixa, um só piso. Não havia o que roubar nem muito que fazer depois das nove – televisão a gente só conhecia dos filmes de domingo, a novela do rádio acabava às 8h. A luz era mínima: tomate pendurado no poste.

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Pra quê iluminação feérica se ninguém se aventurava nas ruas depois das nove? O ônibus da Itapemirim passava às cinco rumo a Guaçuí. O bar do Manuel fechava às oito. A partir daí, só mesmo o médico atendendo um derrame; a parteira aparando um bebê que errou a data; a polícia apartando briga de casal; o padre indo prestar Extrema Unção. Como o nome indica, em sendo extrema, só podia ser concedida quando o doente estava nas últimas. Recebendo, não podia sarar. Nenhum desses profissionais da fé, da ordem e da saúde tinha o direito de ignorar o chamado – Não vou porque já passa das nove, a luz tá muito fraca…

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Sabemos que o último trem para Jaçanã partia às onze, mas em Alegre as luzes se apagavam às nove, e o resto era medo. O escuro era um buraco sem fundo e à meia-noite as assombrações arrastavam correntes pelas ruas. "Dorme menina, que a bruxa já vem. Papai foi à caça, mamãe logo vem", cantava a babá. O pai que ia caçar era resíduo da nossa herança cultural europeia. Quem, em Alegre ou no resto do Brasil, passava o dia caçando? A menina dormia com a cabeça metida em baixo das cobertas. A função das babás era trazer saci, alma-penada, bicho-papão e mula-sem-cabeça para o folclore familiar noturno. Dorme, menina…

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A meia-noite me intrigava, e nem mesmo era o meio da noite. Se a gente ia pra cama às nove e acordava às sete, o meio da noite seria lá pelas duas da madruga. No entanto, esse era um horário inócuo: se nada lhe acontecesse quando o cuco ecoava as 12 badaladas, pode dormir em paz que nada mais vai acontecer. Raciocínio lógico mas pouco convincente – os monstros se escondiam em baixo da cama; mulas-sem-cabeça rondavam os cômodos: os ancestrais desciam das fotos na parede e perambulavam pela casa; as bruxas batiam nas janelas, pedindo orações. Se alguém nas vizinhanças morresse, então...Dorme, menina!

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Muitos anos depois a menina aprendeu que o barulho de passos no meio da noite não era casa mal-assombrada: lavado de dia, o assoalho de madeira secava devagar, estalando e rangendo durante a noite. As bruxas não batiam nas janelas querendo entrar: o vento entortava os galhos da mangueira, fazendo-os arranhar as vidraças. As lascas de madeira esquecidas no fogão de barro chiavam, consumindo seu lume devagar. Dia seguinte a cinza já estava fria - o sol brilhava, a casa era boa, o mundo era feliz – Acorda, menina!

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