Diz o dicionário, ou melhor, o Google online, que ficção é coisa que não existe, embolando no mesmo rolo tudo que foi inventado ou imaginado. Mas devemos acreditar piamente no que os dicionários registram e sacramentam, quando a própria palavra falada ou escrita não passa de invenção? Os idiomas são pura ficção, nada nasceu etiquetado com nome e sintaxe.
Quem se aventura pelos meandros da escrita, seja a Rowling ou a Wanda, pode optar pelo real ou o fantástico, a vida como ela é ou como a gente queria que fosse. Nascemos com nossas preferências subdivididas em facções – uns para a biografia, a pesquisa detalhada, a informação precisa, outros para as invencionices às quais dão cunho de realismo, embora fictício. Mas a realidade, hoje em dia, humilha a ficção.
Tudo que se pode criar já aconteceu, não importa com quem ou quando, em que tempo e lugar. Romeu e Julieta morreram por amor, mas Juca Água-rasa e Mariazinha Pativa também. Feudos ferozes entre as famílias passando de geração em geração, mortes juradas, e os dois se amando no meio da destrambelhada vindita. Já viu essa história antes? Eu também. “Menina, tu vai casar com Sinhô Lourenço, 40 anos mais velho mas cheio dos cobres”, decreta Pativa pai.
Os Água-rasa ajudaram os desditosos amantes? Nem pensar! “Juca,tu vai dar morte súbita no pai dessa moça, que a vez é nossa, antes que nos matem eles”. Os jovens preferiram morrer juntos, saltando de mãos dadas de altíssimo penhasco. É o que consta do laudo policial, mas as comadres contam que apenas as roupas voaram pedreira abaixo, que os corpos ninguém foi lá nas funduras procurar. “Jogaram uns trapos velhos e um bode morto pra atrair os urubus, e sumiram juntos nesse mundão sem fim”.
Uma das versões é ficção e a outra é realidade; mas qual é qual? Se morreram, porém, não foi em vão. Água-rasas e Pativas esqueceram a secular inimizade e são hoje correligionários políticos, um vice de alguma coisa do outro, revezando no mandato seguinte. Ambos envolvidos no esquema de venda de carnes equinas para os açougues da capital do estado, com atestado de bovinas. Com CPI e tudo!
Se têm ou não culpa no cartório, também faz parte dessa moeda de duas faces, ficção ou realidade, verdade ou intriga da oposição, e quem somos nós para definir o gênero! Que tal e qual na escala musical – 7 notas imutáveis desde que conseguiram registrar a música em papel e pauta – nada mais se cria, tudo já foi narrado e escutado, vivido de mentira ou inventado de verdade. Conta aí uma história que já não tenha tido uma versão anterior, igual ou retocada, seja na ficção ou na vida real?