Toda vez que leio alguma coisa sobre o brasileiro que dirige a FAO, vem à minha memória uma reportagem publicada em outubro de 1976 pela revista Veja. Intitulada “Meus Queridos Boias Frias”, a matéria focalizava o drama dos trabalhadores rurais temporários, cujo número era estimado pelo IBGE em 6,8 milhões de pessoas em uma população de 94 milhões, cifra do Censo de 1970.
A expressão que deu título à matéria fora usada inocentemente pelo governador paulista Paulo Egydio Martins em junho num palanque eleitoral no interior do Estado. Como a maioria da plateia era formada por gente humilde da roça, Martins achou que tratá-los por bóias frias geraria uma empatia favorável a ele, filhote da ditadura militar.
Mal sabia o político sem votos, amigo do general Ernesto Geisel, que a expressão “boia fria” era estigmatizada pelos trabalhadores rurais. Tanto que no norte do Paraná fazia sucesso em emissoras de rádio uma canção cuja letra começava assim: “Meu patrão me ofendeu/me chamou de bóia fria/Não bati na cara/pra não perder o dia”.
O comício terminou sem incidentes mas, nos anos seguintes, os trabalhadores rurais foram protagonistas de diversos episódios. O mais graves foi em meados de 1984 na pequena cidade de Guariba, onde os rurais promoveram uma rebelião urbana contra a exploração de seus direitos, incendiaram um carro da Sabesp e entraram em conflito aberto com a Polícia Militar.
Entre as pessoas ouvidas pela reportagem de 1976, destacou-se o agrônomo José Graziano Gomes da Silva, atual diretor geral da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação). Na época, ele era professor de economia rural na Faculdade de Agronomia de Botucatu. Os bóias frias faziam parte de seus estudos sobre a desigualdade de renda na sociedade brasileira e, particularmente, na zona rural.
Graziano conhecia o problema não apenas como técnico, mas por vivência familiar: seu pai José Gomes da Silva, também agrônomo, possuía uma fazenda de cana na região de Pirassununga e fora um dos criadores da Associação Brasileira de Reforma Agrária, com sede em Campinas.
Em sua carreira como professor, Graziano acabou se transferindo mais tarde para a Unicamp, tornando-se um militante ativo do Partido dos Trabalhadores. Quando da eleição do presidente Lula, em 2002, o professor-agrônomo foi nomeado assessor especial e, como tal, deu a ideia da criação do Programa Fome Zero, que começou um esforço legal para reduzir a subnutrição das populações rurais e suburbanas.
O Fome Zero se converteu no Bolsa Familia, programa mantido até hoje, mas sofrendo cortes orçamentários. A agricultura familiar também está sofrendo restrições oficiais. A reforma agrária está praticamente congelada.
De todas as personagens da reportagem de 1976 sobre os bóias frias, uma das poucas que permanecem na mesma trilha é o agrônomo José Graziano Gomes da Silva. Mérito dele. Quando foi demitido do Fome Zero por sua intransigência, ganhou como compensação um cargo na FAO em Roma. Poderia ter se aposentado por lá, mas continua na ativa. E chegou ao topo mantendo o mesmo discurso em favor da eliminação da fome não apenas no Brasil, mas no mundo.
No último dia 6 de março, em pronunciamento público como diretor geral da instituição internacional, diante de 33 representantes de países da America Latina reunidos na Jamaica, Graziano fez um alerta sobre o grande contraste da atualidade: enquanto a fome ainda afeta mais de 1 bilhão de pessoas, a obesidade atinge 650 milhões e o sobrepeso, mais de 1,9 bilhões de adultos. Em suma, falta comida numa ponta e sobra na outra.
Em seu discurso, o diretor geral da FAO disse que a combinação de medidas de proteção social com o fortalecimento da agricultura familiar, que gera desenvolvimento local e contribui para a dinamização dos territórios, é crucial para reduzir a pobreza rural e enfrentar as diferentes formas de má nutrição no momento em que as mudanças climáticas estão afetando profundamente os sistemas agroalimentares em todo o mundo.
Na semana passada, o Fundo Verde do Clima aprovou a primeira proposta de financiamento da FAO: um projeto de US $ 90 milhões a ser desenvolvido no Paraguai.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“A memória cumpre um papel fundamental na proposta de reconciliação entre a natureza e a sociedade.
Héctor Ricardo Leis, filósofo argentino, no livro “A Modernidade Insustentável” (Vozes, 1999)