Sábado, 27 Abril 2024

Humanidade em distopia

Para falar de humano, humanidade e humanismo, gosto sempre de lembrar a vaidade da razão humana já se colocando, enquanto espécie, no topo da cadeia evolutiva. Momentos em que preferimos ignorar a resistência das baratas.

Estamos vivendo um momento em que as relações encrudesceram de tal forma que a beligerância e belicosidade têm se tornado linguagem de afirmação e defesa até nos conflitos mais fúteis como furar uma fila, cometer um erro no trânsito, pisar no pé de alguém e se comportar com afetividade frente ao outro/outra, só por exemplo. Tudo é muito ameaçador, fundamentalmente o outro (ou o inferno – Sartre).

A exigência do ser perfeito se populariza fundamentada na cultura, absolvida como ética e estabelecida na moral de um povo. Ocorre que antes do povo e do cidadão, existe o indivíduo, como o ser natural, todo o resto é invenção humana (vale um passeio por Humano Demasiado Humano – F. Nietzsche).

Quando o "adestramento", por algum motivo ou de alguma forma, não é total (e nunca é, vez que tudo está em trânsito), tem virado encrenca com muita facilidade e frequência. Talvez porque, do outro lado deste indivíduo imperfeito, tem o outro imperfeito, indivíduo ou até mesmo instituição, que se arvora a julgar seu semelhante com a medida que não se julga (pelo mesmo motivo de estar em trânsito).

É muito bom alargar esse entendimento para além dos indivíduos, principalmente quando assistimos o mesmo fenômeno nas relações institucionais, como as competições dos pilares da democracia no Brasil, entre países e organizações internacionais, resultando em conflitos e a caminho de guerras.

Além de transparecer a falência dessas mesmas organizações e coletivos, divididos por seus interesses os mais diversos - o avanço da Otan e a guerra entre Rússia e Ucrânia, a ocupação israelita, as reações terroristas do Hamas e a resposta violenta e genocida de Israel com a marcante ineficiência da ONU – também fica muito nítido o domínio da força, para moldar o posicionamento institucional e construir narrativas coerentes com esse propósito.

No Brasil, a política consegue dividir até mesmo as famílias. A situação chegou a tal ponto, que os grupos afinados excluem o assunto por falta de habilidade para conversar, sabem que a discordância leva a alterações que derramam o caldo em toda discussão. O ponto de vista sobre o tema localiza a pessoa num campo como que estático, e rapidamente se faz característica da pessoa que lhe agrupa com uns e confronta com outros, mas não só naquele tema, e sim como posição existencial. Esse clima vai da política para todos os setores da sociedade, como a arte, religião, etc.

A busca do humanismo no humano se torna vã a partir do momento em que se usa a razão como instrumento de dominação e absolutismo, para desconsiderar a necessidade de hospitalidade, mantendo a individualidade voltada exclusivamente em seus interesses egoísticos - fenômeno já observado e estudado por Emmanuel Lévinas, no século passado, muito por influência das duas guerras.

Em meio a esse clima individualista, egoísta e bélico estabelecido nas relações em geral, apelar ao humanismo se faz necessário e talvez seja o caminho para preservar a vida humana, frente à possibilidade, a todo momento vislumbrada, de um conflito mundial.

Everaldo Barreto é professor de Filosofia

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