Quarta, 15 Mai 2024

Índios x agricultores

Quem fizer um ranking das pessoas mais discriminadas no Brasil certamente vai concluir que desde Pedro Álvares Cabral os índios são candidatos ao primeiro lugar, seguidos de perto pelos negros, os caipiras, os asiáticos, os bolivianos, os nordestinos, os palestinos, as mulheres, os gays, as domésticas, os desempregados, os catadores, os bóias frias, os sem-terra e os pobres em geral...
 
A atual celeuma em torno do grave conflito índios x agricultores precisa ser abraçada de alto a baixo, por uma força-tarefa dos três poderes, sob pena de se conflagar o Brasil inteiro. O conflito é antigo, mas hoje só pode ser explicado e compreendido à luz da Constituição de 1988.
 
Ao garantir aos indígenas o direito à terra dos seus antepassados, nossa lei maior criou um conflito com o direito à propriedade de todos os que – colonos, agricultores, posseiros, grandes empresários -- obtiveram certidões ou títulos por doação de governos, posse ou compra no mercado imobiliário. Registre-se que a Lei de Terras do Brasil é de 1850. Antes prevalecia a legislação portuguesa com suas cartas régias, sesmarias e titulações variadas.
 
Todo mundo dá palpite sobre quem merece ficar com as terras, mas ninguém se dá conta de que à luz da Constituição de 1988 tanto os índios quanto os chamados colonos têm razão.
 
Há um claro conflito entre o direito natural dos índios (artigos 231 e 232) e o direito de propriedade (artigos 5 e 170) dos “brancos”. Na essência esses artigos se contradizem, colocando a nu a irresponsabilidade dos constituintes de 1988. Eles armaram uma bomba que agora começa a pipocar em todo o território nacional.
 
Aconteceu assim: no apagar das luzes dos trabalhos constitucionais, quando só pensavam no juramento final e na volta para casa, os deputados aprovaram a toque de caixa o capitulo VIII (DOS INDIOS) com apenas dois artigos (231 e 232),  fechando os olhos para o risco de um conflito com os artigos anteriores (5 e 170), referentes ao direito de propriedade.    
 
Por tabela (artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias), estão no mesmo barco os descendentes de quilombolas. Como estes ocupam glebas restritas, seus direitos são pouco contestados, mas ainda assim há conflitos explícitos chegando às páginas da mídia.
 
Com os índios é diferente: além de ser muito mais numerosos do que os quilombolas, eles reivindicam áreas imensas, algumas ocupadas há décadas por agricultores “brancos”.
 
Feitas as contas, alguns se dão conta de que os índios, cuja população não chega a 1 milhão de pessoas (menos de 0,5% da população brasileira), teriam direito a cerca de 11% do território, onde poderiam exercer o seu “modo de vida” à antiga.
 
Essa discrepância entre a área das reservas indígenas e a população nativa tem sido especialmente explorada pelos defensores dos agricultores, que somam milhões. É a bancada ruralista contra a bancada ambiental-indigenista numa reedição da batalha em torno a reforma do Código Florestal.
 
Em face disso, tem aflorado a seguinte questão: será justo sacrificar uma maioria de trabalhadores da terra/produtores de alimentos em favor de uma minoria mais afeita ao lazer do que ao labor? 
 
Há índios que ainda vivem como seus antepassados: caçam, pescam, dormem em cabanas, cultivam alguma roça e circulam por vastas reservas, onde recebem assistência gratuita do estado – saúde, educação, alimentação, infraestrutura de comunicação etc. São tutelados e tratados como carentes, mas ou menos de acordo com a chamada Doutrina Rondon, que entrou no século XX apregoando o tratamento humano aos índios.
 
Em contrapartida, há índios que vivem como “brancos”: têm educação, sabem fazer negócios e têm objetivos materiais semelhantes aos dos antigos colonizadores do território brasileiro. São os chamados índios civilizados. Eles têm cacife para dispensar a tutela da Funai e a proteção da Polícia Federal (leia-se Ministério da Justiça), mas não o fazem porque são solidários com seus irmãos indígenas e não vêm motivo para abrir mão de direitos assegurados pela Constituição.
 
Não há dúvida de que todas essas questões precisam ser mediadas pelo Judiciário, em conjunto com o Congresso e o Executivo -- não com base na contraditória legislação vigente, mas por meio de um novo e genuíno espírito de negociação. Sem acordo, concertação ou pacto não se vai sair do impasse criado há 25 anos pela Constituição.
 
LEMBRETE DE OCASIÃO
 
Art 231 da Constituição – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras  que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos seus bens.
 
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
 
----------
 
“Nós acampamos aqui porque queremos adquirir essa terra que foi dos nossos antepassados”
 
Cacique indígena em 2001, explicando porque sua família havia armado barracas de plástico no meio de uma plantação de pinus no oeste de Santa Catarina, onde os conflitos por terras se arrastam há décadas 

Veja mais notícias sobre Colunas.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Quarta, 15 Mai 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://www.seculodiario.com.br/