Sábado, 04 Mai 2024

Menos um

Um estrondo, um susto... Um guardanapo caiu no chão ou a neta quebrou mais um copo? Como sempre acontece, a pior opção é sempre a mais provável, e as provas do crime se espalham pelo chão, em mil pedaços. Advinha quem vai remover? Vem ela pedir desculpas por ter destruído mais um bem do acervo caseiro?  Muito pelo contrário, ela sorri, apenas, sem remorsos ou desculpas esfarrapadas.
 
Pergunto, embora já prevendo a resposta, “Por acaso é um simples copo de propaganda, desses que distribuem fartamente onde quer que se vá, ou é parte integrante do aparelho completo que ganhei no último dia-das-mães?” “Acho que é o novo”, ela diz, e vai cuidar de seus jogos eletrônicos. Ai de mim se quebrar um deles.
 
Quebrar alguma coisa é um acontecimento banal no nosso dia a dia. Um pequeno prejuízo para a economia doméstica, que, no entanto, mantém viva a complexa engrenagem que alimenta a economia nacional.  Se nada quebramos, quebra o fabricante. O problema é que só quebra o que é novo ou caro ou parte essencial de um todo.
 
Na minha infância, quebrar algo em casa era crime de lesa pátria. Se desse a sorte de não ter testemunhas, era melhor desaparecer com os vestígios, deixando que descobrissem com o tempo... “Onde anda aquele vaso de porcelana azul que herdei da vovó?” Podia-se também sair à francesa, e deixar que quebrassem eles a cabeça – “Quem quebrou o espelho da sala?”
 
Filho feio não tem pai, já nos ensinou Confúcio. Não adiantava chorar ou jurar que foi sem querer, “Quebrou? Vai pro castigo”.  Ah, os castigos de ontem não têm nada a ver com os de hoje. Éramos confinados durante horas atrás do guarda-roupa, sem absolutamente nada para fazer. Podiam ao menos mandar fazer o dever de casa, que ficava lá, esperando o castigo acabar para ser feito. Pois sim!
 
Castigo de hoje é tabelado: 15 minutos na poltrona da sala sem televisão, e nunca ultrapassa cinco minutos. Certa vez quebrei um copo na casa de uma amiga. Sem testemunhas, elimino a prova cabal do crime jogando os vestígios na lixeira. A história poderia terminar ali, e provavelmente a amiga não daria pela falta de um copo a menos. Mas a consciência, às vezes, atrapalha os melhores planos.
 
Atitude de criança, pensei. Contei pra dona do copo, e ouço a pergunta fatídica, “Do aparelho novo e completo ou do uso comum?” Era do jogo completo, mas os traumas da infância nos acompanham pela vida a fora – “Acho que era um copo comum”. “Tudo bem, não se preocupe”. A história poderia terminar ali, mas sofri outro ataque de amadurecimento e comprei outro copo.
 
“Ora, não precisava!” ela diz. “O jogo estava completo”, explico. Ela ri e me abraça, “Estava, não está mais. Outro dia a neta quebrou três copos...” E ficou por isso mesmo.  Antigamente tudo era difícil e caro, herdava-se bens dos pais, dos avós, criando elos com o passado. Hoje tudo é descartável; deixa quebrar!

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