Domingo, 28 Abril 2024

Mortinho da Silva

Na grande sala da mansão dos DaSilva - ricos proprietários de fartas terras onde o gado engorda mugindo tristemente - a família se acomoda para a ceia festiva - morre um ano, outro vai chegar. Dona Beleza, a matriarca, senta-se à cabeceira, bate delicadamente o garfo de prata na taça de cristal - adora o barulhinho de sino na chuva - Nos reunimos mais uma vez para celebrar mais um ano…

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Todos aplaudem, festivos, embora todos saibam que ela sabe que eles prefeririam estar ali celebrando a morte dela, e não a de 2023. O marido, Coronel João Numes DaSilva, levanta a taça - Amém! Grita, e ataca o peru. Antes que os demais parentes também se sirvam, o velho coronel cai duro sobre o prato de cerâmica inglesa. Mortinho da silva!

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Não comam o peru! grita Dona Beleza, chorosa mas precavida. Um ataque cardíaco fulminante, declara Mariana DaSilva, médica cardiologista de renome, com vários artigos publicados em revistas especializadas. Sobrinha do falecido e terceira na linha de sucessão. Que absurdo! Quem envenenaria o peru, pondo em risco a vida de todos? Todos perguntam. O único a seguir o protocolo é o mordomo - checa o pulso e não sentindo as pulsações, declara. Não há pulso, portanto não há vida. E liga para a polícia.

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Morto, mas é apenas o marido. O poder está nas mãos de Dona Beleza, que de bela só tem o nome. Para compensar. O delegado chega junto com a ambulância e os paramédicos seguem os procedimentos de praxe enquanto a comida esfria nos pratos. O delegado informa: Morte natural, o coração já bate há muitos anos, ataque fulminante. A parentada suspira aliviada. Não que se importem, mas onde há uma suspeita de crime todos são suspeitos. Uma trabalheira. O corpo é removido, o som da sirene se afastando morre no ar e Dona Beleza, mulher de fino trato, convida o delegado para sentar-se à mesa e desfrutar a farta refeição com a família.

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Dona Beleza levanta a taça de vinho, brindando os bons resultados econômicos do ano que finda. Lamenta a morte do marido assim tão inesperada, e promete que, no próximo ano, a renda dos sanguessugas que se sentam à mesa com ela terá um acréscimo de 23%. Todos aplaudem, comovidos, fingindo não ter ouvido a ofensa. O primo Alberto ousa reclamar - Se adentramos 2024, por que não 24%? A feia senhora sorri, Outra taça de vinho e vão pedir 2024%.

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Ninguém chorou o falecido nem o ano que morreu também com as 12 batidas do relógio suíço pendurado na parede. A garrafa de champanhe francês foi aberta com estrondo e todos aplaudiram, desejando-se mutuamente um novo ano de paz no mundo e felicidade geral na nação, além de grandes lucros nas empresas dos DaSilva. O mordomo já ia servir a sobremesa quando o delegado se serviu de uma fatia do peru…

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