Quinta, 02 Mai 2024

Mulheres reduzidas a dados

Uma alarmante convergência entre a ascensão da inteligência artificial (IA) e a propagação da misoginia vem sendo testemunhada na sociedade contemporânea. Em um contexto em que a tecnologia se entrelaça com as relações de poder, surge uma forma insidiosa de controle: homens misóginos, munidos de algoritmos e dados, encontram na IA uma ferramenta para despir e vestir mulheres contra sua vontade, transformando corpos femininos em um campo de batalha digital.

A disseminação de deepfakes, uma tecnologia de manipulação de vídeo que usa inteligência artificial para substituir rostos em vídeos existentes, é um exemplo gritante dessa tendência preocupante. Sob o pretexto de entretenimento ou simplesmente pela perpetuação do ódio, a tecnologia vem sendo instrumentalizada para subjugar e dominar corpos femininos, transformando-os em alvos vulneráveis.

Não podemos ignorar que esses atos repulsivos estão enraizados em uma questão mais profunda: a crença de que alguns homens têm o direito de possuir e controlar o corpo das mulheres. O advento da IA apenas amplifica essa mentalidade prejudicial, fornecendo aos perpetradores as ferramentas para exercer seu domínio de maneiras cada vez mais insidiosas e perturbadoras.

Os dados alarmantes revelam a extensão desse problema. Segundo a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da SaferNet, as denúncias de misoginia na internet cresceram quase 30 vezes em cinco anos no Brasil. Entre 2017 e 2022, foram registradas 293,2 mil denúncias de crimes de ódio em ambiente virtual, com o sexo feminino sendo o grupo mais vitimado, totalizando 74,3 mil denúncias de misoginia.

É fundamental ressaltar que o aumento dessas manifestações misóginas está intrinsecamente ligado à legitimação do preconceito contra a mulher por figuras políticas e instituições. O respaldo dado a esse discurso de ódio alimenta uma cultura que normaliza a desvalorização e a objetificação, contribuindo para a violência de gênero em todas as suas formas.

No entanto, apesar desses desafios, é importante reconhecer que a internet também desempenha um papel fundamental na propagação da discussão sobre os direitos das mulheres e do feminismo. A sensibilização da sociedade para essas questões tem levado a um aumento nas denúncias de misoginia e a uma maior conscientização.

Além das repercussões emocionais e psicológicas, a misoginia alimentada pela IA também tem consequências tangíveis e devastadoras. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a taxa de feminicídios aumentou 40% no Brasil entre 2017 e 2022, totalizando 1.437 casos em 2022. Esses números não são apenas estatísticas; são vidas perdidas devido ao ódio.

Diante desse cenário alarmante, a busca por soluções concretas para combater a utilização maliciosa da IA e proteger a autonomia das mulheres, torna-se algo inadiável. Isso requer uma abordagem multifacetada que envolva a regulamentação eficaz da tecnologia, a conscientização pública e o fortalecimento das leis de proteção às vítimas.

É hora de reconhecermos que o avanço tecnológico não pode ser dissociado das questões de igualdade de gênero. Precisamos de um debate público contínuo que não apenas aborde os perigos da IA, mas também reafirme o direito à autodeterminação e à dignidade. Somente assim poderemos construir um futuro onde a tecnologia seja verdadeiramente inclusiva e emancipadora para todos.

Alguns exemplos de misoginia com uso da IA:

1. Chatbots misóginos: em alguns casos, chatbots foram programados para emitir respostas misóginas e sexistas quando questionados sobre questões relacionadas às mulheres, refletindo os preconceitos de seus desenvolvedores e causando controvérsia.

2. Assistentes virtuais sexistas: alguns assistentes virtuais, como Siri da Apple e Alexa da Amazon, foram criticados por suas respostas insensíveis ou condescendentes a perguntas ou comentários sobre feminismo, consentimento sexual e questões de gênero, perpetuando estereótipos e desrespeitando as mulheres.

3. Algoritmos de recomendação de conteúdo: algoritmos de plataformas de mídia social e serviços de streaming muitas vezes recomendam conteúdo misógino e sexualmente objetificador para os usuários, contribuindo para a disseminação de mensagens prejudiciais e normalizando a violência contra as mulheres.

4. Deepfakes pornográficos: a tecnologia de deepfake tem sido usada para criar vídeos pornográficos falsos que colocam o rosto de mulheres em cenas pornográficas sem seu consentimento, resultando em assédio e difamação online.

5. Assédio e doxxing: algoritmos de plataformas de mídia social muitas vezes são explorados para direcionar e amplificar ataques misóginos contra mulheres, incluindo doxxing (revelação não autorizada de informações pessoais) e assédio online, o que pode ter consequências devastadoras para as vítimas.


Flávia Fernandes é jornalista, professora e autêntica "navegadora do conhecimento IA"
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