Trump como agente da erosão da democracia
Os Estados Unidos ficaram conhecidos por um tipo de patriotismo que se traduziria no chauvinismo afetado da excepcionalidade, cujo marco histórico foi a Doutrina Monroe, de 1823, feita pela declaração da “América para os americanos”, em que uma soberania nacional se expandiria para uma política de influência regional no continente americano, isto é, na direção do México e da América Latina.
Em 1904, os Estados Unidos tiveram o Corolário Roosevelt, em que o presidente Theodore Roosevelt, que governou o país de 1901 a 1909, iniciou a política internacional do Big Stick, que era um aprofundamento e uma radicalização da Doutrina Monroe, em que o intervencionismo norte-americano começa, de fato, incluindo invasões de países como o Panamá, o Haiti, e até mesmo as Filipinas, na Ásia.
A Doutrina Truman, de 1947, no entanto, se ligará ao que ficou conhecido, historicamente, como a política de boa vizinhança, sob o influxo da Guerra Fria, na concorrência geopolítica entre sistemas econômicos e político-ideológicos opostos, representados pelo capitalismo liberal norte-americano e o comunismo-socialismo soviético. Essa diplomacia muda do unilateralismo doutrinário para um multilateralismo liderado pelos Estados Unidos.
A mudança estava no contexto, também, do rearranjo da institucionalidade internacional, depois do fim da fracassada Liga das Nações, que não conteve a ascensão nazista, e que incluía uma nova ordem mundial, e uma geopolítica do pós-guerra, advindo da derrota do Eixo, sendo aí fundada a Otan, um sistema de alianças militares do ocidente capitalista.
Tal advento da Otan teria como resposta o Pacto de Varsóvia, feito entre a União Soviética e os países da Cortina de Ferro no leste europeu. E ainda dentro desse novo ordenamento, teríamos a fundação da ONU, que seria o organismo internacional de cooperação entre os países para a manutenção da paz, com o intuito de promover o multilateralismo, que também estava sendo encampado pela Doutrina Truman.
O modelo de multilateralismo da ONU se estrutura pelo direito internacional, com orientação ao desenvolvimento, a paz e a cooperação, tendo o uso da força como último recurso e exercido sob o mandato do Conselho de Segurança. A propósito, a Carta da ONU só autoriza o uso da força em legítima defesa ou sob autorização expressa, se fundamentando na soberania igualitária dos estados na sua concepção geopolítica.
Após os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono, incluindo uma tentativa falhada de atacar a Casa Branca, realizada pelos terroristas da Al-Qaeda, o maior evento terrorista da História Mundial, no chamado pós-11 de setembro, ano de 2001, ocorreu a Doutrina Bush, que incluía a Guerra ao Terror, que tinha o objetivo de eliminar o chamado Eixo do Mal, que incluía alguns países do Oriente Médio, árabes, e o Irã, que é persa. Era uma guerra preventiva e de promoção da democracia liberal através da força, tentando transformar esses países a partir da ocupação das Forças Armadas norte-americanas.
Com o atual modelo trumpista de “Paz pela Força”, por sua vez, tem a figura de Marco Rubio, que acumula a função de secretário de Estado e principal assessor de Segurança Nacional, assim como atuou Henry Kissinger na década de 1970, enfraquecendo a diplomacia norte-americana com um discurso mão dura e unilateralista, rompendo com o multilateralismo da ONU e com o consenso feito pela Celac em 2014, em que se firmou uma Zona de Paz na América Latina e Caribe, como uma área livre de tensões e conflitos, com promoção do diálogo e da cooperação na resolução de disputas.
Marco Rubio, por exemplo, este ano, em sua última viagem ao Caribe e alguns países da América Latina, fez com que Nicolás Maduro solicitasse convocação extraordinária da Celac, para reafirmar esse compromisso de 2014. E a situação escalou, com a presença das Forças Armadas dos Estados Unidos próxima à Venezuela, com ataques a embarcações e uma fase de guerra psicológica contra o regime de Maduro, tentando a sua derrubada do poder.
A paz pela força, em Trump, funciona então como um subproduto do poder militar, em que a dissuasão toma o lugar da diplomacia como método, e serve à doutrina da “America First”, ou seja, de um trumpismo que tem o caráter de total indiferença a outras nações, na sua versão da excepcionalidade norte-americana, do unilateralismo herdado da Doutrina Monroe.
No Caribe, a cooperação no combate e tratamento de dependência química dão lugar a ameaças de sanções a países que não obedeçam a agenda de segurança norte-americano na região, com um tipo de big stick na zona de trânsito de drogas, em que operações militares foram intensificadas, na intenção de mudança de regime na Venezuela.
E ainda, com a renomeação do Departamento de Defesa (DD) para o histórico Departamento de Guerra (DG), tal fato reflete uma virada simbólica, e também concreta, com um caráter de beligerância, e com o intuito de retomar o caminho dos Estados Unidos como maior potência militar do mundo, colocando em crise o direito internacional e o papel geopolítico da ONU.
Os Estados Unidos, além de uma política comercial do tarifaço, inclui nesta volta do trumpismo ao poder no país, critérios de segurança ligados a problemas como a migração, o narcotráfico e o terrorismo, colocando a política externa no objetivo de reposicionar os Estados Unidos como os maiorais em poder militar mundial, defesa da soberania nacional e desprezo pelo multilateralismo. Essa postura imperialista, por conseguinte, gera protestos dentro do país, culminando com as manifestações do movimento denominado “No Kings”.
Esse caráter hegemônico e imperialista, se juntando a imagens de inteligência artificial com Trump usando uma coroa e quetais, junto ao shutdown da máquina pública norte-americana, arregimentou manifestantes em diversas cidades dos Estados Unidos, neste movimento do No Kings, e que a Casa Branca chamou de opositores marxistas e radicais.
Tal movimento se trata, por fim, de protestos contra Donald Trump como agente da erosão da democracia norte-americana, de suas instituições, incluindo prisões arbitrárias e ações de censura por parte do governo, embora Trump, em entrevista à Fox News, antes de deixar Washington, com todos os tiques de um autocrata, hipocritamente, afirma: “Dizem que me chamam de rei. Eu não sou um rei”.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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