Quarta, 24 Abril 2024

Os filhos de Touro Moreno

 

Escrevo esta coluna antes de saber se os dois filhos de Touro Moreno conquistaram o ouro olímpico, mas, mediante as circunstâncias, o simples fato de estarem disputando as Olimpíadas de Londres já lhes confere o direito de escreverem seus nomes com tinta dourada. Se o pai é um Touro, os meninos Esquiva e Yamagushi são bezerros de ouro, com tudo o que me permite a licença poética. 
 
Tenho convicção de que, mais do que homenageados, eles serão bajulados em sua volta para casa. As homenagens são justas e devem ocorrer, mas é de causar indignação o pouco caso que se faz do esforço de gente como esse pai e seus filhos, por puro amor ao esporte. Haverá muita gente hipócrita querendo aparecer ao lado dos meninos de ouro, os pugilistas que foram mais longe na história das participações do Brasil nos Jogos.
 
Servílio de Oliveira conquistou o bronze em 1968 no México e nunca mais alguém conseguiu feito igual. Agora, os irmãos Falcão conseguem não apenas igualar, mas superar isso, pelo menos um deles, Esquiva, já havia garantido a Prata quando eu fazia esta reflexão, e o outro, Yamagushi, tinha assegurado o bronze. Será que aguardaremos mais 45 anos para que alguém brilhe nesse esporte, onde a técnica prevalece à fúria?
 
Obrigatoriamente, fui remetido ao passado, quando eu era um jornalista iniciante. Havia acabado de chegar de minha “escola de correspondente”, que “cursei” por pouco mais de quatro anos em Alegre, aprendendo a profissão na base do erro e acerto quando ainda era menor de idade. Cheguei como Redator de Esportes em A Tribuna ao lado de um dos maiores profissionais de imprensa que conheci em minha trajetória (incluída a passagem pela grande imprensa do Rio), João Luiz Caser, que viera de O Diário e era o editor de setor na irrequieta Redação da Alberto Torres.
Naquela ocasião, criamos, talvez, o mais ousado projeto da imprensa capixaba, nos tempos em que o telex imperava e o “fac-simile” era o maior avanço tecnológico de que a Redação poderia dispor. Fotos internacionais chegavam pelo serviço de radiofoto da UPI e da AP e sua recepção era controlada e limitada, porque o custo de cada foto era altíssimo. O noticiário esportivo era dominado pela Agência Sport Press, que não existe mais.
 
Pois bem, naqueles tempos, com uma equipe enxutíssima, criamos o Caderno de Esportes de A Tribuna, que ainda era no formato “jornalão”. A gente escrevia feito louco. Carro era artigo de luxo. O estacionamento da empresa vivia às moscas. Tempos das máquinas de escrever, em que Gilson Félix escrevia com dois dedos, sem qualquer preocupação com a pontuação e, quando eu reclamava, ele datilografava todos os pontos, vírgulas, interrogações, ponte-e-vírgula, numa folha separada e me entregava para que eu “distribuísse como quisesse”.
 
Eu era Redator, mas meu lugar sempre foi na rua, na escola em que me formei, por isso escrevia sempre uma a duas reportagens especiais todas as semanas. Naqueles tempos havia um cabra arretado, com história controversa de leão-de-chácara da zona de São Sebastião, na Serra. Mais que isso, a fama dele era de envolvimento com as drogas, por uso e venda. Pois me mandaram, moleque ingênuo do interior, entrevistar aquele sujeito, que todos conheciam como Touro Moreno. Um apaixonado pelo boxe, que desafiava a lógica para defender sua paixão. Colecionava mulheres e filhos na mesma proporção de seus sonhos de ser um grande campeão, alucinado ou não.
 
Da forma mais direta possível, perguntei se ele “fumava maconha” (esse era, naqueles tempos, um fator de marginalização do indivíduo) com a mesma objetividade como perguntei a Castor de Andrade, em pleno Estádio Engenheiro Araripe, se ele era mesmo bicheiro e mafioso. Assim como Castor, Touro apenas sorriu. Mas eu gostei mesmo da história dele e, nesta semana, quando não se fala de outra coisa a não ser a performance de seus filhos em Londres, recordei isso ao Caser, que é o Diretor de Jornalismo da Rede Tribuna.
 
Touro era um esportista marginalizado, mas dávamos a ele muito espaço. Fiz matéria especial com ele, que naquela época já morava de forma muito modesta. A situação era-lhe difícil, o que não impedia que ele amasse o boxe e as muitas mulheres. E sonhasse. Era o tempo de Éder Jofre terminando a carreira e Touro Moreno insistindo em manter a sua. Graças a esse destaque que lhe demos, Touro conseguiu realizar uma luta contra um campeão brasileiro. Perdeu por pontos, mas a gente percebia que o campeão havia, de certo modo, poupado o veterano.
 
Touro Moreno passou a vida inteira sonhando com a glória no boxe, o que consegue, agora, através de seus filhos. É curioso ler o depoimento de Esquiva Falcão de que foi colocado nos eixos pelo pai quando, na adolescência, desiludiu-se com o boxe foi vender drogas. Antes da polícia, foi Touro quem o pegou e endireitou. Coisa de pai, que conhecia muito bem esses descaminhos.
As condições em que vive Touro Moreno, e como preparou seus filhos para serem campeões, demonstra bem que, se alguém tem glória nessa história, ela somente pertence a ele, como pai, e aos seus filhos, que aceitaram seus conselhos. Ninguém mais tem o direito de querer tirar uma casquinha na glória dos bezerros de ouro de Touro Moreno. Portanto, revoguem-se, liminarmente, todas as tentativas nesse sentido.
 
Tudo o que fizerem por eles agora será pouco diante da projeção que deram ao Estado. Pelo menos, acordem para a realidade de que o esporte, seja a modalidade que for, é a forma mais barata e efetiva de se dar uma chance de inserção e projeção social a todas as camadas sociais.
 
Touro Moreno é o mentor, Esquiva e Yamaguchi os realizadores do maior feito do esporte capixaba em todos os tempos – nem tanto pelas medalhas de Londres, mas por transformarem em ouro as cinzas da vida dura que sempre tiveram. Bravo, Touro!
 


José Caldas da Costa é jornalista, escritor, licenciado em Geografia. Escreve neste espaço, como colaborador, semanalmente. Contatos:

Veja mais notícias sobre Colunas.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Quarta, 24 Abril 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://www.seculodiario.com.br/