Sexta, 03 Mai 2024

Para fugir do tempo

 

O relógio enroscado no meu pulso é uma pequena peça circular com números em volta e três ponteiros cumprindo a enfadonha tarefa de girar eternamente sobre um eixo comum, até que sua vida útil se esgote.  Eternamente, na linguagem dos relógios, significa que eles duram até que a bateria acabe, ou caiam, quebrem, molhem. Enfim, que nem nós.
 
 
Também vamos girando incessantemente, não dentro, mas sobre um corpo circular, sem nos preocuparmos com o rodar constante da nossa hospedaria. Até que um dia nossa vida útil também se esgota, e viramos sucata, obsoletos como o celular de ontem. Nem sempre se pode trocar a bateria.
 
 
Meu relógio é um objeto barato e simples, mas útil.  Minha vizinha tem um belíssimo Cartier que custou cem vezes mais, e sempre que nos encontramos faço questão de conferir nossos relógios, e pasmem, a hora nos dois é sempre a mesma, apesar das classes sociais tão discrepantes. Seja ele de camelô ou de grife, me força a cumprir meus horários com a mesma exatidão da vizinha do relógio pedante.
 
 
Mas até o relógio tradicional que carregamos no braço, moda criada por nosso Santos Dumond, está caindo em desuso. O celular também informa a hora certa, também está sempre à mão, e é mais confiável. Nas famigeradas mudanças de horários – seja de inverno ou de verão -  eles se ajustam sozinhos, ninguém precisa adiantar ou atrasar uma hora.
 
Não apenas o celular ameaça a existência do meu singelo relógio de pulso. No canto direito da tela do computador, um marca-tempo constante me lembra que tenho horários a cumprir. No microondas da cozinha outro piscar constante me avisa que panela no fogo é barriga vazia. Na tela da TV, no DVD... até sinal de trânsito em muitos lugares já tem um relógio digital me informando que estou atrasada.
 
 
No quarto outro painel luminoso empilha números em neon uns sobre os outros, a me lembrar que o corpo precisa de descanso, mesmo se quero ver um filme até mais tarde, ou que preciso levantar, mesmo se quero me enrolar nas cobertas um pouco mais. Fazer o quê? Quem inventou o relógio não inventou o tempo.
 
 
O mundo muda o modo de contar o tempo, mas continuo devota a esse objeto inanimado que me adorna o braço. Sua função giratória imita o compasso do globo terrestre, criando o tempo mas totalmente indiferente a ele.  Constante e insensível,  indiferente também às bilhões de formigas humanas que giram no mesmo compasso, eternas escravas do insignificante bater das horas.
 
 
Como nem poderia deixar de acontecer, o relógio aderiu à modernidade, e nossos velhos apetrechos com ponteiros vão virando peças de museu. Como o velho cuco na parede da sala, que continua batendo inutilmente suas horas imaginárias.

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