Domingo, 28 Abril 2024

Pra não dizer que não contei


Lembra aquele dia que caí do cavalo e torci o tornozelo? Ia pra escola primária onde estava lotada, onde não passava ônibus nem carro de boi. Em dias de chuva nem pensamento. Os alunos irmanados em uma única sala: dos ainda analfabetos até o quarto ano primário. O material escolar fornecido pelo governo era escasso, e os cadernos tinham na contracapa a risonha face de um senador do Estado, não direi o nome.

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Nessa época ninguém perguntava se a verba para a doação dos cadernos vinha dos cofres públicos ou do bolso em fundo do doador. No mais, era só o giz que recebíamos. Vale-alimentação e auxílio-transporte? Pois sim! Saía do escasso salário da professora, mas assim mesmo a gente era feliz e não xingava os donos do poder. Ironicamente, também não se mudava o voto. No começo do ano ocorria o remanejamento, não sei se ainda funciona desse jeito. A grande leva de professorinhas de todo o Estado corria para Vitória, na esperança de pegar uma escola melhor, ou mais perto de casa.

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O governo pagava as passagens e hospedagens, dava vale-alimentação para todas? Pois sim! Na maioria eram jovens em início de carreira e ninguém reclamava. As escolhas se baseavam no tempo de serviço ou quem tem o melhor padrinho...todos sabem como as coisas funcionam e não creio que isso tenha mudado. Mas havia outros métodos - teve o famoso caso da professora que ateou fogo na escola lá no Cantão do Judas, não tendo assim que ficar longe de casa, sem material escolar e sem vale-transporte.

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Da minha parte havia escassez de padrinho. A cidade tinha dois candidatos para cada cargo público, e em sendo amigo de todos, meu pai informava a cada um deles: lá em casa os votos são divididos irmãmente, metade do senhor, metade do seu distinto oponente. Portanto, nunca tive padrinhos no processo de seleção - acho que era assim que diziam. Enfrentei muita estrada em lombo de burro (os alunos debochavam das minhas habilidades equestres) ou de charrete (os alunos adoravam).

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Quando me casei e mudei para Vitória, precisava ser transferida para meu novo destino e aí só mesmo com a ajuda de São Padrinho, e dos mais habilitados. Pede a uns e outros, e nada! Até que encontrei alguém que conhecia alguém que era parente de um vereador ainda iniciante no jogo político, e ninguém lhe pedia nada. Encarei, expliquei a situação, e na semana seguinte eu já estava tomando posse em uma escola na periferia de Vitória. Diz um velho ditado: Não peça a Deus, peça ao santo menos rezado.

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Todos os dias úteis, manhã clareando, orvalho ainda pingando das folhas das árvores, nas saídas da cidade um bando de jovens professoras aguardava uma carona para sua escola…indo pra onde, Fessora? O chofer, fosse de caminhão ou automóvel de luxo, não negava ajuda. Ah, tá, pode subir que eu levo lá! Fim do expediente lá vinham elas de volta, sabe Deus com quem, missão comprida e cumprida. Imagina isso nos dias de hoje, com o feminicídio subindo nas estatísticas, tarados à solta, olha bem com quem andas. Ninguém negava ajuda e nunca soube de qualquer problema.

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