Rio de Janeiro. Bairro do Estácio. 14 de Março de 2018. O som, já característico da rotina dos cariocas proveniente de nove estampidos de arma de fogo, corta o silêncio daquele fim de noite para interromper, precoce, covarde e barbaramente, uma das mais significativas e potentes vozes do povo oprimido brasileiro. Quatro tiros transfixaram o corpo da vereadora Marielle Franco (Psol) e três atingiram o corpo do seu colega Anderson Gomes. Quatro tiros que, direcionados ao corpo de Marielle, queriam, em verdade, atingir e exterminar não só sua própria vida, mas tudo aquilo que ela ousou representar.
Foi um tiro contra a mulher negra que rompeu com as cercas da senzala, enfrentou os capitães do mato, obteve sua alforria e desafiou a hegemonia de poder da Casa Grande. A mulher negra que se negou a assumir o papel do nada social a ela predestinado na sociedade racista de classe. A mulher negra lésbica que assumiu o controle sobre o seu corpo, sobre os seus desejos e não mais se deixou estuprar silenciosamente pelo Sinhozinho.
Um outro tiro dirigiu-se à mulher pobre, favelada, cria da Maré. É o tiro que todos os dias atravessa a cabeça de centenas de moradores, especialmente os meninos jovens, das periferias deste país. É o tiro do extermínio da juventude negra, da população pobre, das classes perigosas, dos indesejáveis, dos inúteis, dos descartáveis ao Capital. É o tiro do genocídio social que estamos vivendo e que Marielle tão vivamente combateu.
A terceira bala cravou a militante, ativista, defensora dos direitos humanos, que sonhou dedicar a vida a construir uma nova forma de sociabilidade. O tiro é mais um daqueles que por dezenas de vezes buscou calar a voz de quem se levanta contra toda e qualquer forma de opressão. É o mesmo tiro de Dorothy Stang, Padre Gabriel Maire, Margarida Maria Alves, Chico Mendes e infindáveis outros. É o tiro engatilhado pelo ódio social, pela intolerância cega, pelo discurso “bandido bom é bandido morto” ou “defesa de direitos humanos é defesa de bandido”.
O último tiro que selou a morte de Marielle atingiu o peito da democracia que um dia ela sonhou viver. É o tiro do autoritarismo elitista que historicamente age neste país para manter o poder circunscrito às classes dominantes e impermeável ao povo. É o tiro contra a esquerda, contra um projeto alternativo de poder e de sociedade. É o tiro de quem apoia golpes parlamentares, bate panela para o fim da Constituição, sai às ruas querendo intervenção militar ou apoia candidaturas de prepostos da Ditadura Militar.
A imbecilidade e a covardia dos assassinos e também de quem os legitima, todavia, não os deixam ver que é possível com quatro tiros pôr fim à vida humana, como tragicamente o foi com a querida Marielle, mas não se mata com tiros ideais, sonhos, projetos, sobretudo, quando estes se conectam visceralmente com o querer de milhares de pessoas que não suportam mais tamanha opressão e iniquidade.
A gravidade do som daqueles tiros pode se tornar o barulho capaz de despertar parte da sociedade brasileira que ainda não compreendeu o abismo no qual as forças dominantes deste sistema político-econômico nos colocaram e do qual não haverá saída senão pelos sonhos interrompidos de Marielle.
Bruno Alves de Souza Toledo é professor e militante de Direitos Humanos e doutorando em Política Social pela Ufes.

