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Quem paga a conta senta na cabeceira?

Quem paga a conta senta na cabeceira. E quem senta na cabeceira, tem posição privilegiada para observar – e influenciar – a movimentação de todos à mesa. Assim diz o ditado popular, mas assim, definitivamente, não deveria ser em casos de financiamento de pesquisas de universidades públicas por empresas privadas.

Mas o que de fato acontece, nos cada vez mais frequentes acordos acadêmico-industriais, se esconde ainda por detrás de uma cortina de fumaça … ou de poeira, ou mais especificamente, de pó preto.

A polêmica voltou à tona nesta semana, com a divulgação da aprovação, em regime de urgência pelo Conselho Universitário da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), de uma pesquisa no valor de R$ 2 milhões, financiada pela ArcelorMittal Tubarão.

Com o nome de “Modelagem e monitoramento dos poluentes atmosféricos na Reg. Metropolitana da Grande Vitória para fins da associação da qualidade do ar e sintomas de asma entre crianças e adolescentes”, tramita na Ufes como processo de número 022266/2017-81.

Uma das duas maiores responsáveis pela contaminação do ar da Grande Vitória – as empresas Vale e ArcelorMittal, ambas localizadas na Ponta de Tubarão, geram mais de 80% da poluição do ar na região, segundo o Inventário de Fontes Emissoras de Poluentes Atmosféricos da Região Metropolitana da Grande Vitória do ano de 2010, um dos poucos estudos disponíveis – a siderúrgica, bem como sua vizinha mineradora, precisa mesmo financiar estudos e ações de redução, compensação e reparação dos danos causados pela sujeira que deixa escapar de suas chaminés e processos produtivos.

É o que diz o bom senso e o que estimula o princípio do poluidor-pagador, uma normativa do Direito Ambiental cada vez mais popular nos casos de crimes socioambientais e cujo objetivo, rezam os juristas da área, é estimular posturas mais responsáveis, evitando possíveis danos, implementando assim os tão caros princípios da prevenção e da precaução.

A questão é que o bom senso também diz ser necessário muita transparência e regras rígidas nos instrumentos jurídicos utilizados para formalizar a transferência de recursos financeiros para custeio de pesquisas de universidades públicas, no caso em questão, uma das maiores poluidoras do ar financiando pesquisa acadêmica sobre impactos dessa contaminação sobre a saúde da população.

Denúncias de irregularidades nesse tipo de associação se multiplicam em todo o país, havendo investigações dos Tribunais de Contas e Ministérios Públicos. No Espírito Santo, o vento nordeste tem soprado forte não só o pó preto sobre a população, mas também os protestos de inúmeros acadêmicos e ambientalistas, insatisfeitos com a forma como as indústrias degradadoras têm aumentado sua presença na única universidade pública do Estado.

Dois milhões aqui, sete milhões lá … seja diretamente entre empresa-universidade, seja com as bênçãos do governo estadual por meio de sua Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado (Fapes), seja por meio de concursos de monografias e afins financiados pela ArcelorMittal (a edição de 2017 teve como vencedor da categoria Mestrado um projeto do Centro Tecnológico da Ufes).

E no bonde do financiamento privado de pesquisas públicas, tem de tudo: laboratórios da área de petróleo implantados pela Petrobras, pesquisas sobre logística e pelotização financiadas pela Vale, tentativas de parceria da Aracruz Celulose (Fibria) com o Centro de Ciências Humanas e Naturais (CCHN) para “acompanhar” estudos em comunidades quilombolas afetadas pelas monoculturas de eucalipto e… contrato disfarçado de termo de cooperação entre Ufes e ArcelorMittal para financiar pesquisa relacionando poluição do ar e sintomas de asma em crianças e adolescentes.

Com transparência? Com garantia de autonomia universitária? Não se sabe. Ocorre que, em meio à azáfama de aprovação urgente do projeto Ufes-Arcelor, a transparência e a segurança jurídica do polêmico acordo ficaram a desejar. A decisão estava marcada para ocorrer no dia 14 de maio, mas foi prorrogada em três dias, atendendo à reivindicação da Comissão de Assuntos Didáticos, Científicos e Culturais do Conselho. No dia 17, após apresentação do parecer da referida Comissão, a votação resultou em 14 sim e oito não.

O parecer recomenda a rejeição do projeto e a elaboração de um novo texto, que proteja a autonomia da universidade no direcionamento dos estudos e divulgação dos dados levantados ou recebidos pela empresa financiadora, bem como a redefinição da identidade jurídica do acordo, pois trata-se de um “contrato” entre as partes e não “termo de cooperação”, como está posto.

Alerta feito, alerta ignorado. Os conselheiros solicitaram apenas duas alterações no texto do projeto: a retirada de uma das várias cláusulas relacionadas ao sigilo das informações fornecidas pela ArcelorMittal (apenas uma cláusula, sendo mantidas todas as demais); e a exclusão de uma empresa estrangeira – ToxStrategies, sediada na Califórnia/EUA – como o agente 3 do projeto (os outros dois são o Centro de Ciências da Saúde e o Programa de Pós-Graduação em Engenharia Ambiental do Centro Tecnológico, ambos da Ufes). Empresa, é importante ressaltar, sobre a qual recaem denúncias de manipulação de dados científicos em favor da indústria de chumbo nos Estados Unidos.

As duas solicitações foram feitas, mas devido à aprovação do projeto, não há qualquer obrigação regimental no sentido de que a redação final– se é que haverá de fato um novo texto – será novamente apreciado pelo Plenário antes da assinatura do esperado contrato (ops, termo de cooperação), ficando, portanto, a cargo da empresa financiadora.

Há como vigorar, aqui, uma exceção do ditado popular, e que as regras não estejam sob a visão e a influência privilegiadas de quem senta na cabeceira de mais uma mesa de negociação entre a universidade e os maiores algozes do equilíbrio ambiental e da saúde dos capixabas? É a pergunta que não quer calar.

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