Bom para concurso público, mas péssimo para os azares da vida

A memória, essa desconhecida, zomba de nossas vaidades. Esqueci de tomar o remédio, mas não esqueço aquela pessoa que passou na minha frente na fila do supermercado. A atendente viu, mas esqueceu de lembrar que existe uma ordem de chegada. Às vezes deixamos passar o freguês que tem apenas um item, mas se ele furar a fila sem pedir licença não vou esquecer nunca. Sou invisível, por acaso?
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Lembrar nem sempre é bom, mas esquecer nem sempre é ruim: equilíbrio de poderes. Tem gente que não esquece, tudo fica armazenado por data e horário, não importa se chorou ou se sorriu. Bom para concurso público, mas péssimo para os azares da vida. Para a maioria de nós, a memória tem mecanismos de defesa: guarda coisas insignificantes do dia a dia e apaga situações desagradáveis ou traumáticas. Lembra do Geraldo, que te deixou esperando no altar e fugiu com a Ritinha? Não sei de quem você está falando…
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Lembrar é fácil, difícil é esquecer. Como aquele tombo na reunião de fim de ano da empresa – não faltou ninguém! Zenilda caiu esparramada de pernas pro ar e de saia curta. No dia seguinte pediu demissão. Em Cadeira Vazia, Elis Regina cantou: “Passei tantas horas tristes, nem quero lembrar desse dia”, mas está lembrando. Esquecer é fácil, difícil é lembrar onde guardei a chave do carro, o segredo do cofre, a senha do bitcoin. O nome daquela artista que fez aquele filme com aquele ator…das vantagens de esquecer: ver um bom filme várias vezes sem lembrar que já viu..
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Dizem os entendidos que se você sabe que esqueceu, então não é Alzheimer, mas levo horas procurando o livro que vai me tomar menos tempo para ler do que encontrá-lo. Com tanta coisa no ar, acabei esquecendo o aniversário da amiga… Esqueceu outra vez? Eu nunca esqueço do seu. Mas eu sempre dou bons presentes, mesmo atrasada. Tá insinuando que meus presentes não são bons? Virou ex-amiga, e nunca mais esqueci o aniversário dela.
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Bom seria ter a memória dos elefantes, que voltam para morrer no local onde nasceram. Nós, seres superiores, não temos essa opção: como saber a hora de morrer para pegar um avião e voltar a Muniz Freire, onde nasci? Morre-se de bala perdida, de acidente de trânsito, morre-se atado a uma cama de hospital. Doutor: A senhora tem apenas duas semanas de vida…Paciente: Então volto pro Brasil para morrer onde nasci. Doutor: Impossível, os voos estão todos lotados com os ilegais fugindo dos mascarados.
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Minha mãe contava que encontrou uma cobra venenosa no meu berço…euzinha recém-chegada a esse mundo e a cobra enroscadinha do meu lado. E ficou nisso. Ela não contou e não fiquei sabendo como a tiraram de lá, se me mordeu ou me estrangulou…anos-luz transcorridos, fico matutando: ela contou e eu esqueci ou esqueci de perguntar? Mas não esqueço que quase morri de mordida de cobra.
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A medalha de ouro vai para a memória das abelhas, que voam de flor em flor e não esquecem o caminho de volta para a colmeia. As formigas também voltam ao formigueiro carregando pesos maiores do que elas, mas prefiro as abelhas: isso de todas trabalharem para sustentar a rainha parece coisa de cinema, ou da Idade Média. Mas não trabalhamos todos para sustentar os governos?

