Um relatório do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), de 2009, apontava que somente no ano de 2006 pelo menos dez presos foram esquartejados na Casa de Custódia de Viana (Cascuvi).
O presidente do CNPCP, Sérgio Salomão Schecaira, autor do relatório, ficou embasbacado com o que viu não só em Viana, mas em todo o sistema prisional capixaba. Após a inspeção, Shecaira pediu a intervenção federal no Espírito Santo. Em vão.
Na época, Ângelo Roncalli, então secretário de Justiça do governador Paulo Hartung, ficou revoltado com o pedido de intervenção. Ele alegava que a situação era grave em todos os presídios brasileiros, tentando justificar uma situação caótica a partir de outras.
Roncalli, na ocasião, rebateu com escárnio os números de Shecaira e de outras organizações de direitos humanos que confirmavam 10 esquartejamentos somente em 2006 na Cascuvi. O secretário admitia outras mortes de presos, mas apenas dois esquartejamentos.
Os anos se passaram Roncalli acabou deixando o governo Renato Casagrande em setembro de 2012 — isso mesmo, pasmem, o “zelador” das masmorras de Hartung ainda foi aproveitado pelo sucessor socialista.
Roncalli só saiu quando sua permanência na Secretaria se tornou insustentável com a eclosão da Operação Pixote — escândalo de corrupção na autarquia (Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo – Iases) controlada pela Sejus. Roncalli, inclusive, foi denunciado pelo Ministério Público Estadual (MPES) nesse caso.
Sete anos depois, os assassinos dos presos que estavam sob custódia do Estado continuam impunes. Roncalli, sempre que era questionado sobre as mortes dos presos — independente da modalidade do crime: enforcamento, espancamento, facadas, esquartejamento — apressava-se em justificar, até com certo orgulho, que o Estado iria indenizar as famílias desses presos, como se isso compensasse as perdas humanas. “O Estado tem responsabilidade de indenizar as famílias e já há ação neste sentido”, disse Roncalli, em 2009, ao portal de notícias UOL.
De fato, algumas indenizações, aos poucos, estão sendo pagas aos familiares dos presos brutalmente assassinados. Uma decisão de maio deste ano determina que o Estado pague R$ 40 mil de indenização a cada um dos três filhos de um detento que foi torturado e esquartejado na Cascuvi em 2008.
Curioso é que há um processo indenizatório correndo na Câmara Cível, mas não há absolutamente nada na Criminal. Agora dá para entender melhor porque Roncalli sempre tratou as mortes sob o ponto de vista das indenizações, talvez ele já soubesse que os assassinatos não resultariam em processos criminais. “Indenizamos as famílias e fica tudo por isso mesmo. Afinal, pessoas pobres com R$ 40 ou 50 mil nas mãos podem se resignar mais facilmente”. Devia ser mais ou menos essa a tese.
E parece que a tese faz todo o sentido. O próprio presidente do Tribunal de Justiça do Estado, desembargador Pedro Valls Feu Rosa, afirmou textualmente a este jornal que não há um único processo criminal sobre os assassinatos ocorridos na Cascuvi durante a gestão da dupla Hartung-Roncalli.
A questão é inquietante. No caso do exemplo, a própria Justiça reconhece que a vítima, um detento da Cascuvi, foi torturado e esquartejado dentro da unidade. A Justiça também entendeu que o Estado, em última instância, era o responsável pela custódia do preso, logo, foi condenado a indenizar os familiares.
Percebam o disparate. De um lado a Justiça reconhece que houve um crime brutal e responsabiliza o Estado a indenizar os familiares. Mas quem responde pela responsabilidade criminal dos crimes?
Talvez os filhos do detento assassinato, não estejam tão resignados assim com os R$ 40 mil de indenização. Talvez eles queiram saber quem são os culpados pela morte do pai. Afinal, os assassinos desse crime bárbaro continuam impunes.
A má notícia para os familiares é que os assassinos continuarão impunes. Não se sabe por que motivo, mas não há um único processo criminal tramitando na Justiça para apurar as mortes dos presos esquartejados na Cascuvi. Logo, sem processo não há crime.