Ordem comercial neomercantilista
O tarifaço de Trump está relacionado à desindustrialização dos Estados Unidos, resultando num declínio tecnológico e econômico que começou nos anos 1990, ao passo que a China avançava rapidamente com um crescimento econômico contínuo baseado em exportações. O problema da queda da hegemonia norte-americana nas cadeias globais de comércio se segue a uma estagnação dos países do bloco europeu e a liderança do crescimento econômico global pelos países dos Brics.
Esse aumento da concorrência internacional agora resulta em um sistema de sanções, por parte dos Estados Unidos, que vai além da periferia capitalista, atingindo países como China e Rússia, na tentativa de conter a ascensão de uma potência na Eurásia, o que já tem a China no cenário próximo e logo mais pode ter também a Índia.
É bom lembrar que a política de Trump, embora de proporções maiores e um foco difuso ou até uma ausência de lógica e tudo se misturando em avanços, recuos, bravatas e vias de fato, ainda pode ter paralelo, guardada essas proporções, com o histórico recente da política de diplomacia comercial internacional norte-americana, pois ataques ao sistema de livre comércio internacional já foram efetuados pelo governo democrata de Barack Obama, no ano de 2012, em que houve bloqueios nas nomeações de novos juízes para o Supremo Tribunal de Comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Tal medida era para deter o benefício dado pela OMC à China, uma vez que um tribunal estrangeiro não poderia se sobrepor a um norte-americano, de acordo com a Constituição dos Estados Unidos, pois havia ameaças à soberania do país com tal alegação de favorecimento da China pela OMC. Atualmente, a crise do imperialismo norte-americano é uma soma de derrota da Otan na guerra da Ucrânia, ascensão tecnológica chinesa, e o avanço da discussão sobre a desdolarização no campo monetário, em que Donald Trump tem a missão de fazer “A América grande novamente”.
Trump, então, leva o slogan à prática no sentido de reafirmação do tique secular do Destino Manifesto, na escala global de enfrentamento das regras da política comercial, em sentido contrário a acordos firmados no auge da era da globalização, nos anos 1990, por exemplo. Período este em que a globalização virou guia da economia política mundial, nos anos 1990, em que se aprofundou a interdependência e a cooperação internacional nas cadeias globais de produção, de exportação e importação, numa subdivisão de expertises, em que um mesmo produto poderia ser tanto resultado de diferentes componentes de diferentes regiões como moeda de troca para interesses mútuos de diferentes países.
Por sua vez, com o governo atual de Trump, a escala de medidas foi dos blefes e de um sistema de tarifas bilaterais para um pacote global de aplicações de tarifas, inserindo aí parceiros políticos e econômicos históricos dos Estados Unidos, em que pilares erguidos pela liderança dos próprios Estados Unidos, como o sistema multilateral de comércio, após a Segunda Guerra Mundial, passaram a ser derrubados.
Tais pilares remetem ao que se instituiu com o chamado Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, junto a uma liberação comercial, que daria, mais adiante, no surgimento da Organização Mundial do Comércio, a OMC. Tal organização que, por conseguinte, beneficiou interesses norte-americanos até a crise dos subprime, na alavancagem que deu origem à recessão econômica internacional em 2008.
Os Estados Unidos anunciaram a sua saída da OMC para enterrar seu “sistema geral de preferências”, e que internamente foi bem recebida por dois setores da burguesia do país, que inclui empresas não transnacionalizadas, que podem tomar parte do mercado interno que antes consumia bens importados, e as big techs, em vista de um melhor posicionamento frente à liderança tecnológica da China. Contudo, tal saída da OMC nunca ocorreu, pois Trump fez duras críticas, ameaças, pressão para atendimento das demandas norte-americanas, mas o que aconteceu foi a suspensão das contribuições à organização por parte dos Estados Unidos.
Tal suspensão veio dentro de um esforço do governo Trump de cortar gastos e levantar barreiras comerciais. Ou seja, os pagamentos para os orçamentos de 2024 e 2025 à OMC foram suspensos, num processo de revisão das contribuições dos Estados Unidos para organizações internacionais, e não disse à mesma quando sairia o resultado dessa revisão. O fato é que Trump assinou uma ordem executiva instruindo o secretário de Estado, Marco Rubio, a revisar todas as organizações internacionais das quais os EUA são membros “para determinar se elas são contrárias aos interesses dos EUA”.
Tais atrasos podem prejudicar a capacidade operacional do secretariado da OMC. E de acordo com as regras da organização, qualquer membro que deixar de pagar suas taxas após mais de um ano estará sujeito a “medidas administrativas”, e que se constituem em punições progressivas, à medida que o tempo sem pagamento das taxas se estende. O problema da paralisação da OMC promovida pelos Estados Unidos é que limita a capacidade da organização de arbitrar conflitos na área comercial, e isso em meio à guerra tarifária empreendida pelo governo Trump.
A OMC foi criada em 1995, com apoio dos Estados Unidos, que estiveram no centro da criação e da operação do atual sistema internacional de comércio, quando o país tinha maior hegemonia econômica. Portanto, esta relação dos Estados Unidos com a OMC mudou a partir do crescimento da concorrência chinesa. Tal afastamento já se refletia na política industrial do governo democrata de Joe Biden, já com medidas protecionistas.
Por sua vez, quanto às empresas multinacionais, voltando a falar do atual governo Trump, houve uma compensação com a redução de impostos domésticos, com uma operação de cobertura de déficit comercial por tarifas de importação. Tal política econômica remete a uma ordem comercial neomercantilista, em sua versão moderna, que era praticada no século XIX, um completo retrocesso, segundo um apelo para a recuperação do protagonismo industrial dos Estados Unidos, que poderá, num primeiro momento, enfrentar um repique inflacionário e recessão.
Contudo, tais medidas do governo Trump enfraquecem a diplomacia norte-americana, abrindo oportunidades de acordos comerciais à revelia dos Estados Unidos e do sistema dólar, além de provocar um movimento de represálias ao país norte-americano, em que o Brasil, por exemplo, poderá se inserir em políticas de fortalecimento do sul global, com acordos regionais e cooperação através do Brics.
Os Estados Unidos iniciaram sua saída do Acordo de Paris em 2017, se retirando formalmente em 2020, e sendo reintegrado, em 2021, pelo governo Biden. Agora ocorre novamente um processo de saída do país do acordo sobre mudanças climáticas neste novo governo de Trump, com previsão para ser consumada em 2026. E aqui se configura, novamente, o problema de se tratar do segundo país do mundo em emissões de gases de efeito estufa, podendo estimular outros países a saírem também deste acordo de luta global contra as mudanças que estão aumentando a temperatura do planeta, em 1,5 ° C acima dos níveis de antes da Revolução Industrial.
Houve, também, o anúncio da saída dos Estados Unidos, pelo governo Trump, da Organização Mundial da Saúde (OMS), a agência de saúde pública das Nações Unidas, pois, segundo o presidente, a OMS “continua a exigir pagamentos injustamente onerosos” ao país. A ordem executiva assinada por Trump menciona ainda a má gestão da pandemia pela organização, além da falta de independência em relação a seus países-membros.
O problema remete a uma saída formal que já ocorrera no primeiro mandato de Trump, em julho de 2020, no meio da pandemia de Covid-19, em que houve congelamento dos repasses à OMS. Tal processo foi revertido pelo governo Biden, em seguida. E esta nova decisão de Trump de sair da OMS, por sua vez, responde à pressão de grupos internos dos Estados Unidos, com relação à pandemia, críticos das ações da OMS nesse contexto, e que se trata de um grupo negacionista da ciência, antivacina.
A OMS foi fundada em 1948, como uma agência especializada em saúde subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU), com sede em Genebra, na Suíça. A organização tem papel no combate a doenças transmissíveis, como gripe e HIV, e doenças não transmissíveis, como câncer e doenças do coração. E ainda atua em ações de vigilância e prevenção.
A OMS faz parte do conjunto de organismos multilaterais da ONU, em que ocorre uma transferência de poder dos países-membros para essas organizações. O fato é que somente no Conselho de Segurança tal concessão de poder se efetiva de modo mais evidente, pois nos outros organismos se tem uma dependência de consenso entre os países-membros, o que, no caso da OMS, em seu enfrentamento da pandemia da Covid-19, demonstrou uma capacidade relativa de inserção, de emitir ordens.
Diante da falta de força política desses organismos multilaterais, a saída dos Estados Unidos da OMS deixa um vácuo que será ocupado pela China, pois esta avançou em seu domínio tecnológico na área da saúde nos últimos anos, sobretudo na produção massiva de vacinas sob a demanda de combate da pandemia de Covid-19. Por conseguinte, os chineses já se caracterizam por grandes avanços técnicos e econômicos, e isso também resulta em maior influência política no nível mundial.
Por fim, os cortes no financiamento dos programas da OMS pelos Estados Unidos atingirão, sobretudo, as ações da organização em países emergentes, pois o país é o maior doador individual da OMS, o que irá também prejudicar o desenvolvimento de pesquisas científicas, pois será cortado o contato dos centros de controle e prevenção de doenças que ficam nos Estados Unidos com a OMS. Essa saída dos Estados Unidos da OMS representa mais um desmonte no sistema internacional erguido após o fim da Segunda Guerra Mundial. O impacto é grande, pois o país norte-americano está na vanguarda da pesquisa científica ligada à medicina.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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