Todo mês de novembro, as discussões acerca do negro e do racismo no Brasil voltam à tona devido ao Dia da Consciência Negra. Desenterram desesperadamente a famigerada frase de suposta autoria de Morgan Freeman – alterada, mal interpretada e isolada de contexto – que afirma “O dia em que pararmos de nos preocupar com consciência negra, amarela ou branca e nos preocuparmos com consciência humana, o racismo desaparece”. Simples assim! Há também aqueles que aproveitam e discursam indignados sobre essa mania de vitimismo do negro, afinal brancos também foram escravizados. Por fim, outros esbravejam que não pagarão a dívida histórica porque não escravizaram ninguém.
Nada novo sob o sol do país da democracia racial.
É claro que não vou perder a oportunidade de reacender a discussão, contribuindo com outras que nos direcionam para os principais pontos de divergências sobre esse assunto.
O primeiro elemento que normalmente é usada nessa discussão, é o fato de que a escravidão sempre esteve presente na maior parte das sociedades. Na antiguidade, a escravidão era recorrente e tinha suas peculiaridades conforme objetivo e localidade.
E, sim, em alguns lugares do continente africano, uma tribo escravizava outra em consequência das guerras tribais.
Já na Idade Moderna, a escravidão transcorreu em outros aspectos. A cor da pele e a diferença de fenótipos não foram motivos para escravizar os negros africanos. No entanto, com a rentabilidade e a ampliação do tráfico negreiro, a ideia europeia de cultura e crença superiores foram utilizadas como pretexto para justificar o trabalho forçado dos negros.
Partimos, então, para o segundo ponto e talvez o mais importante: a forma como sucedeu a libertação dos negros no Brasil. Primeiramente, não houve nenhuma política que contribuísse com a inserção dos ex-escravos na sociedade. Além do mais, criou-se ações de incentivo aos imigrantes europeus, que passaram a ocupar postos de trabalho, principalmente nas lavouras, restando a maioria dos negros migrar para locais à margem da coletividade.
Após esse período, as representações negativas em relação aos afrodescendentes impregnaram na sociedade, tendo em vista que pertenciam majoritariamente a classes subalternas, tinham a estética ridicularizada, a cultura demonizada e, por vezes, eram tratados como uma “raça” inferior. Todo esse contexto, contribuiu para a formação de modelos mentais que foram perpetuados e ainda reforçados por instituições sociais.
Entendam que diferente de outros tipos de escravidão, a negra é marcada pela cor da pele e cria estigmas. A representação do negro na sociedade foi cristalizada a partir de construções histórico-sociais relacionados aos afrodescendentes que outrora foram escravizados.
Sendo assim, afirmar que outros povos também foram escravizados como forma de diminuir a problemática em torno das questões do racismo no Brasil é inútil, pois somente o período escravista da Idade Moderna não explica o preconceito de cor, haja vista que o ponto da questão está, sobretudo, no desenrolar dos fatos pós-abolição.
Ademais, no sentido literal, hoje não existe uma dívida a ser paga porque esta deveria ser destinada aos negros alforriados e aos seus filhos. O governo da Alemanha – com objetivo de reparar e reconhecer o seu erro – ainda hoje indeniza os sobreviventes dos campos de concentração e todas as pessoas que foram privadas de liberdade. O holocausto matou cerca de 6 milhões de judeus. Estima-se que a escravidão privou a liberdade de mais de 12 milhões de negros e causou a morte de outros tantos por maus-tratos e pelas condições subumanas que foram submetidos.
Portanto, gritar que precisamos de consciência humana e que somos todos iguais não é suficiente. Não falar sobre racismo não o faz desaparecer. Até a década de 90, era um assunto quase tabu. Os estereótipos relacionados aos negros eram tão críticos que poucos se autodeclaravam negros, além da tentativa de embranquecimento, seja ao querer diminuir as características físicas ou ao enxergar vantagem no casamento com alguém de pele mais clara. Não havia consciência racial. Não há democracia racial em um país que necessita de uma lei que classifica racismo como crime.
Mesmo diante de todo esse histórico, a maior parte do negro no Brasil teve muita passividade em lidar com as injúrias raciais e atitudes racistas sofridas. Mas no momento em que houve indignação coletiva e reconhecimento da infeliz posição social que a maioria dos negros ainda estiveram por muitos anos, são simplesmente atacados como vitimistas.
A atual conjuntura, na qual os brancos se indignam porque tudo agora virou racismo, a tarefa mais árdua, diante dessas ideias propagadas inúmeras vezes de tal forma que se tornaram um fato, é o reconhecimento de que a escravidão e o processo de abolição deixaram resquícios. Por isso, que a demanda agora deve ser de desconstrução dos modelos mentais perpetuados na sociedade.
Conhecer a história dos nossos antepassados, entender que o racismo é uma construção histórico-social, perceber que o preconceito de cor ainda perdura em situações cotidianas e denunciar ações de injúrias raciais não nos faz vitimistas. Reconhecer que há uma dívida do Estado que deveria ser paga aos nossos antepassados, não nos faz ficar inertes. Compreender essa prerrogativa permite aos negros tratar do assunto com veemência e perceber sua própria realidade para galgar mais: assim como já tem sido, porém menos do que deveria ser. Essa consciência não nos faz estagnar. Pelo contrário, nos liberta. Conhecimento sempre liberta!