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Cassiano Ricardo e o século XX

Cassiano Ricardo tem como ideia central de seus últimos trabalhos em poesia uma denúncia da guerra e do progresso tecnológico destrutivo, numa nova visão pessimista do conhecimento científico que resulta numa crítica sobre o estado de sobrevivência em que se encontra a natureza humana, e que tem como grande impacto a imagem apocalíptica da bomba atômica, vulto e sombra que atingirá também o estro de diversos outros poetas do século XX do pós-guerra ou Guerra Fria e do choque que foi a Segunda Guerra Mundial, curiosamente se ligando mais ao fenômeno atômico do que propriamente ao holocausto, outro crime e tragédia humanos de vulto neste século em que tudo foi testado, desde totalitarismos até bombas devastadoras como as atômicas.
 
Na parte final da obra poética de Cassiano Ricardo, podemos ver sua reflexão pessimista sobre a ciência e o futuro, tais como em seus livros Jeremias Sem-Chorar (1964) e Os Sobreviventes (1971), livros que demonstram a inversão de uma percepção otimista da técnica que vinha de vanguardas artísticas e poéticas como havia no futurismo de Marinetti. Agora tínhamos a bomba atômica e tudo muda em relação a isso, o mundo poderia ser extinto pelo Homem e não por imagens bíblicas, nós tínhamos acabado de criar um poder destrutivo maior do que tudo, a vida passa a ser vivida na Guerra Fria na sensação de catástrofe iminente e com isso a ciência, a tecnologia e a ideia de progresso sofrem uma inversão negativa e pessimista, portadora de uma possível destruição em escala mundial.
 
No seu livro de poesia Os Sobreviventes, Cassiano Ricardo tem como tema a condição humana transformada radicalmente por esta nova destruição ativa e potencial vistas no século XX, e que está diretamente associada ao avanço científico e tecnológico, e aqui com um livro que não vai falar da bomba atômica, mas do progresso numa visão pessimista do futuro, tudo como um grande documento tirado da leitura de notícias de jornal, e que reúne poemas que estarão, por sinal, interligados, numa obra coesa que é a descrição em forma de poesia da desilusão contemporânea, que agora vê o progresso técnico como catástrofe.
 
No livro João Torto e a Fábula (1956), por sua vez, conjunto vasto de poemas que vai tratar da ameaça nuclear, João Torto é um pescador que vê a bomba de hidrogênio cair sobre uma ilha deserta. A consciência histórica em Cassiano Ricardo nesta altura de sua obra está ligada ao combate contra a utilização bélica da tecnologia nuclear, sendo então, por fim, uma consciência planetária e não somente histórica. A descoberta de Cassiano Ricardo aqui, por fim, é de uma fraternidade despertada pela possibilidade da extinção total.
 
POEMAS :
 
JOÃO TORTO E A FÁBULA (1954)
 
GÁS LACRIMOGÊNEO : O poema de Cassiano Ricardo aqui começa como uma peça de resistência, o homem (poeta) que represa as lágrimas, mas que aqui é assaltado de sua fortaleza pelo gás lacrimogêneo, no que o poema tem força e sucumbe num golpe duplo que o poeta floreia com seu estro que combate na cidade : “Aplaudi o orador do comício./Mas aplaudi, apenas, sem nenhuma/intenção de chorar.” (…) “Mas a polícia compareceu rutilante./A sua máquina de fazer chorar/funcionou/maravilhosamente, rutilantemente./E a multidão se dispersou chorando,/como se um monstro bíblico/desfizesse a alegria das ruas em pânico/com o seu choro mecânico e coletivo./E os meus olhos choraram lágrimas/inverídicas./No entanto eu não pretendia chorar./Pretendia, ao contrário, apartear o orador/pra lhe contar que há muito tenho os olhos/enxutos./Que sou um habitante da caatinga./Que sou antimarítimo, anticeleste.”. A lágrima inverídica, a máquina de fazer chorar da polícia, tudo o que o poeta, nas suas origens, recusa, sua vida seca da caatinga já cansou de levar chumbo e tem a casca grossa de tudo que poderia exasperar, mas já foi tanto, que a dureza toda já transformou tudo em pedra, no que o poeta canta que de tantas razões para se chorar, nem se chora mais, no que temos : “Porque pertenço a uma família enxuta e magra/a quem a sede fez secar os olhos …/Porque moro num chão onde são muitas as razões pra/chorar/mas onde não se chora.” (…) “Que nome terá o crime, a iniquidade/de quem me fez chorar na rua, no áspero país/onde não se chora:/Onde não se chora senão de saudade?”
 
MONTANHA-RUSSA (1960)
 
MONTANHA-RUSSA: O poema transita em uma inquietude, de um lugar instável, tal montanha-russa, no que temos : “já o ser inquieto não/está em nenhum lugar/porque a inquietação já/é uma forma de não/estar nunca estaR”. O trânsito aqui também da imaginação, numa montanha-russa que sobe cai, no que segue : “quem imagina não/está em si somente/nem somente onde está/está de repente/sem cuspir nem porvir/numa montanha-russa/só pelo prazer/perpendicular/de subir e caiR”. E o poeta então pede : “Espera-me na porta/se estiveres na lua/maria azul luz clara” (…) “só terás tempo de dizer” (…) “que louco é este/que chegou da terra e não/me trouxe sequer/uma floR”. O louco ou poeta está num turbilhão, em que traz o poema, mas esquece a flor.
 
COMPETIÇÃO: O poema tem uma estrutura simples, e tem um esquema em que se repete o raciocínio com diversidade de imagens, que conclui sempre no melhor ou mais belo, que é o que o poema nos diz, ao fim deste em que se conclui um esquema que é circular, belo é o mar e o barco no mar, pois : “O mar é belo./Muito mais belo é ver um barco/no mar./O pássaro é belo./Muito mais belo é hoje o homem/voar./A lua é bela./Muito mais bela é uma viagem/lunar.” (…) “Belo é o azul./Mais belo o que Cézanne soube/pintar.” (…) “O mar é belo./Muito mais belo é ver um barco/no mar.”
 
A DIFÍCIL MANHÃ (1960)
 
A DIFÍCIL MANHÃ: O poema é um canto de esperança, dirigido a todos, até a quem o poeta não conhece, e temos aqui um estro em que se diz de forma universal a forma poética da esperança, no que temos : “Vontade de mandar lembrança/a alguém que não conheço.” (…) “Quando um dístico, pra ser lido,/(por todos) de um e do outro lado,/Como uma grande luz-azul,/me anunciará :/aqui é que começa o país/da esperança?” (…) “O relógio/soluça como um pássaro/em meu bolso.”. O dístico é um prisma que mira para todos os lados, e é também este lugar total e universal que todos chamam de esperança.
 
A CIDADE FEROZ: O poema é uma grande construção de uma cidade de bichos, estes que não são os rebuscados, mas bichos ferozes de uma lógica fria, que o poeta nos explica, neste poema bruto e duro em ferocidade, no que temos : “Quero construir minha pequena/ferocidade em flor. Num jardim. A capricho./Afinal, sou um homem da cidade/mas tenho um coração de anjo e de bicho./Não quero, para o meu jardim zoológico,/bichos ornamentais, faisões, pavões, aves do paraíso,/de plumagem setecolorida./Quero um jardim mais lógico, como o exige/A cidade feroz.”. Eis a ideia do poeta de sua cidade feroz, no que segue : “Tragam-me bichos que pareçam capricho/da natureza. Os mais grotescos, os mais fulvos.” (…) “Quero bichos que me comeriam vivo/se não fossem as grades, e eu na relva.” (…) “Como o exige/minha ferocidade de homem da cidade.” (…) “Tudo na lógica de um jardim de bichos,/não de flores.” (…) “Fera feérico/feroz/ cidade./Ferocidade/único :/Fica abolida, em meu jardim, que é só de bichos/e não de flores, a palavra saudade.”. O poema é duro, e não ornamental, tal que é a cidade feroz, que junto e invertido resulta na palavra ferocidade.
 
JEREMIAS SEM-CHORAR (1964)
 
7 RAZÕES PRA NÃO CHORAR: O poema mais uma vez resiste ao pranto e se vê então num mundo de tal terror, que até sofrer é em vão, no que temos : “O mundo do terror/e do encanto/me obsta o pranto.” (…) “Um coice de cavalo/no comício/e eu – Jeremias seco –/olho de vidro./A cidade mecânica/timpânica/me fez um objeto/concreto./Uns mataram a sede/no suor dos outros./E eu fiquei sem água/nem sal.” (…) “A lágrima é ridícula./Um homem não chora.”. E o poema encerra com o poeta que represa as lágrimas, pois não quer ser idiota.
 
POÉTICA: O poema, sucinto, revela a poesia e o poeta, em uma forma simples e direta, no que segue : “Que é a Poesia?/uma ilha/cercada/de palavras/por todos/os lados./Que é o Poeta?/um homem/que trabalha o poema/com o suor do seu rosto./Um homem/que tem fome/ como qualquer outro/homem.”. O poema apresenta a poesia, esta que se faz ilha de versos e estrofes, onde tudo é possível, e as palavras orbitam este astro que decifra esta ciranda no estro em atividade, e ao fim temos o poeta, este que tem fome de tudo, e que sua para produzir o melhor de uma senda poética que lhe entretém a alma.
 
POEMAS :
 
JOÃO TORTO E A FÁBULA (1954)
 
GÁS LACRIMOGÊNEO
 
Aplaudi o orador do comício.
 
Mas aplaudi, apenas, sem nenhuma
 
intenção de chorar.
 
Pois, como diz a Bíblia : ao dia
 
de hoje já não bastarão os seus males?
 
 
Mas a polícia compareceu rutilante.
 
A sua máquina de fazer chorar
 
funcionou
 
maravilhosamente, rutilantemente.
 
E a multidão se dispersou chorando,
 
como se um monstro bíblico
 
desfizesse a alegria das ruas em pânico
 
com o seu choro mecânico e coletivo.
 
E os meus olhos choraram lágrimas
 
inverídicas.
 
 
No entanto eu não pretendia chorar.
 
 
Pretendia, ao contrário, apartear o orador
 
pra lhe contar que há muito tenho os olhos
 
enxutos.
 
 
Que sou um habitante da caatinga.
 
Que sou antimarítimo, anticeleste.
 
………………………………………………………………
 
 
Porque um homem não chora.
 
 
Porque sou filho das manhãs sem orvalho.
 
Porque pertenço a uma família enxuta e magra
 
a quem a sede fez secar os olhos …
 
Porque moro num chão onde são muitas as razões pra
 
                                                                                         chorar
 
 
mas onde não se chora.
 
Meu filho choraste em presença da morte?
 
Meu filho não és.
 
 
Que nome terá o crime, a iniquidade
 
de quem me fez chorar na rua, no áspero país
 
onde não se chora:
 
Onde não se chora senão de saudade?
 
 
MONTANHA-RUSSA (1960)
 
 
MONTANHA-RUSSA
 
 
já o ser inquieto não
 
está em nenhum lugar
 
porque a inquietação já
 
é uma forma de não
 
estar nunca estaR
 
 
 
que se dirá então
 
do ninguém que mora
 
em mim por não ter não
 
onde morar
 
na terra no ar no maR
 
 
 
quem imagina não
 
está em si somente
 
nem somente onde está
 
está de repente
 
sem cuspir nem porvir
 
numa montanha-russa
 
só pelo prazer
 
perpendicular
 
de subir e caiR
 
 
 
ó meu distante amor
 
quando eu passar espera-me
 
na tua porta não
 
te poderei beijar não
 
só terei tempo para
 
na paisagem em fuga
 
entre areia e sal
 
te deixar na mão
 
uma floR
 
 
 
Espera-me na porta
 
se estiveres na lua
 
maria azul luz clara
 
quando eu passar como
 
um peixe-voador não
 
terei tempo para
 
te ofertar sequer
 
uma floR
 
 
 
só terás tempo de dizer
 
como a mulher de Arvers
 
que louco é este
 
que chegou da terra e não
 
me trouxe sequer
 
uma floR
 
 
 
COMPETIÇÃO
 
 
O mar é belo.
 
Muito mais belo é ver um barco
 
no mar.
 
 
O pássaro é belo.
 
Muito mais belo é hoje o homem
 
voar.
 
 
 
A lua é bela.
 
Muito mais bela é uma viagem
 
lunar.
 
 
Belo é o abismo.
 
Muito mais belo o arco da ponte
 
no ar.
 
 
A onda é bela.
 
Muito mais belo é uma mulher
 
nadar.
 
 
Bela é a montanha.
 
Mais belo é o túnel para alguém
 
passar.
 
 
Bela é uma nuvem.
 
Mais belo é vê-la de um último
 
andar.
 
 
 
Belo é o azul.
 
Mais belo o que Cézanne soube
 
pintar.
 
 
Porém mais belo
 
que o de Cézanne, o azul do teu
 
olhar.
 
 
O mar é belo.
 
Muito mais belo é ver um barco
 
no mar.
 
 
 
A DIFÍCIL MANHÃ (1960)
 
 
A DIFÍCIL MANHÃ
 
 
Vontade de mandar lembrança
 
a alguém que não conheço.
 
Que mora atrás do mundo espesso.
 
Onde a árvore da esperança
 
ficou sendo minha antípoda.
 
 
Quando um dístico, pra ser lido,
 
(por todos) de um e do outro lado,
 
Como uma grande luz-azul,
 
me anunciará :
 
aqui é que começa o país
 
da esperança?
 
 
De modo que a esperança aí comece
 
e não termine, por estar,
 
durante a noite inteira
 
(como uma grande luzazul)
 
escrita num e no outro lado
 
da fronteira.
 
 
Quando a manhã, não a manhã
 
que chega sempre tarde,
 
mas a que chegará à tarde,
 
à noite, a qualquer hora,
 
porque não obedece ao céu
 
nem ao relógio,
 
virá?
 
 
O relógio
 
soluça como um pássaro
 
em meu bolso.
 
 
A CIDADE FEROZ
 
Quero construir minha pequena
 
ferocidade em flor. Num jardim. A capricho.
 
Afinal, sou um homem da cidade
 
mas tenho um coração de anjo e de bicho.
 
 
Não quero, para o meu jardim zoológico,
 
bichos ornamentais, faisões, pavões, aves do paraíso,
 
de plumagem setecolorida.
 
Quero um jardim mais lógico, como o exige
 
A cidade feroz.
 
Em meu catálogo, saudade será substituída por ciudad.
 
 
Não quero uma coleção de borboletas.
 
Nem de garças. Para o meu coração de anjo e de bicho
 
as garças são graças que ficaram garças
 
por anagrama, quando esparsas.
 
 
Tragam-me dromedários para a minha vocação de deserto.
 
Com sedes de viagens sobre areia movediça
 
e enrediça, entre
 
plantas secas que estalam flores de papel,
 
sempre-vivas, com pétalas de alumínio dourado.
 
 
 
(A cidade, uma selva de cimento e relva.
 
Um gavião debulhando os meus olhos, duas flores
 
de cardo, mas em rima oculta.)
 
 
Tragam-me bichos que pareçam capricho
 
da natureza. Os mais grotescos, os mais fulvos.
 
Não os de pelo desbotado
 
mas a zebra listrada, a girafa da Núbia.
 
Nada de gansos, de plumagem cinza.
 
Porque o cinza é burguês, é neutro. Os gansos
 
já não anunciam, como os do Capitólio.
 
 
Gansos
 
mansos
 
 
 Quero bichos que me comeriam vivo
 
se não fossem as grades, e eu na relva.
 
(Eu foto hipo pótamo gráfica mente na relva)
 
 
Quero bichos t´rombudos, chifrudos, felpudos, rabudos
 
Com que graça Miss Ruth os apontará – dedos de
 
rosa –
 
a seus irmãos pequenos, olhos verdes.
 
Venha um enorme tigre de Bengala (eu na relva)
 
para o meu jardim. Uma pantera negra
 
debaixo da roseira, como a do Cantus Planus.
 
Não du foyer, como a de Rollinat.
 
 
Venha um rinoceronte, oto-rino-bifronte.
 
Venha uma onça – madrugada elétrica. Venham
 
os elefantes, ainda indômitos, da África. Orelhudos.
 
Daqueles que um rajá oferece a outro
 
em datas genetlíacas egipicíacas. Como o exige
 
minha ferocidade de homem da cidade.
 
Cidade substituindo saudade e eu na relva.
 
(Eu foto hipo pótamo gráfica mente na relva)
 
 
Tudo na lógica de um jardim de bichos,
 
não de flores.
 
Onde haja fotógrafos especializados em fotografar crianças
 
junto às jaulas.
 
Fera feérico
 
feroz
 
 cidade.
 
Ferocidade
 
único :
 
Fica abolida, em meu jardim, que é só de bichos
 
e não de flores, a palavra saudade.
 
JEREMIAS SEM-CHORAR (1964)
 
7 RAZÕES PRA NÃO CHORAR
1
O mundo do terror
 
e do encanto
 
me obsta o pranto.
 
2
 
Subtraído à lei
 
da gravidade
 
perdi a noção
 
do que é grave.
 
3
 
Um coice de cavalo
 
no comício
 
e eu – Jeremias seco –
 
olho de vidro.
 
4
 
A cidade mecânica
 
timpânica
 
me fez um objeto
 
concreto.
 
5
 
Uns mataram a sede
 
no suor dos outros.
 
E eu fiquei sem água
 
nem sal.
 
6
 
A seca,
 
lacrimossedenta,
 
bebeu meu poço.
 
E agora?
 
 
7
 
A lágrima é ridícula.
 
Um homem não chora.
 
POÉTICA
 
1
 
Que é a Poesia?
 
uma ilha
 
cercada
 
de palavras
 
por todos
 
os lados.
 
2
 
Que é o Poeta?
 
um homem
 
que trabalha o poema
 
com o suor do seu rosto.
 
Um homem
 
que tem fome
 
 como qualquer outro
 
homem.
 
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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