Mauro Cordeiro pesquisa trabalho, raça e classe nas escolas de samba
Antropólogo e doutorando pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mauro Cordeiro desenvolve sua tese sobre como raça e classe influenciam a organização do trabalho artístico nos barracões das escolas de samba do Rio de Janeiro. Ele está em Vitória participando do Seminário Trabalho na Cultura, realizado pelo Grito da Cultura e Associação Cuca nestes dias 3 e 4 de maio (sábado e domingo).

No primeiro dia de evento, Mauro ressaltou o trabalho coletivo e invisível de vários artistas e artesãos, muitas vezes em condições precárias, para fazer acontecer o maior espetáculo cultural do planeta. “Precisamos pensar nas contradições do trabalho que produz a cultura, que produz esse espetáculo. Existe um trabalho invisível que produz o espetáculo. Esse trabalho é construído no barracões, majoritariamente por homens e mulheres negros, reproduzindo uma divisão racial do trabalho artístico, que coloca as mulheres negras em posições de inferioridade”, aponta o pesquisador.
Se bem as escolas de samba surgem como espaço de afirmação das comunidades, com um protagonismo negro e periférico num período de pós-abolição da escravatura, carregado de sentido político, elas também sobrevivem em contextos de um projeto inacabado de emancipação, em que os acessos a espaços, poderes e codições de vida e de morte são limitados e o trabalho segue sendo uma categoria indispensável para a construção do país e dos sujeitos que o compõem.
Para colocar uma escola na avenida, lembra Mauro Cordeiro, há uma grande quantidade de profissões, ofícios e funções necessárias e várias linguagens que se desenvolvem em paralelo e interdependência, como música, artes plásticas, dança e teatro. Mas grande parte da mídia busca ressaltar os desfiles como uma obra de um artista único, que é o carnavalesco.
“Geralmente, os carnavalescos são homens brancos que vêm de uma formação específica. Isso é importante para a gente entender a produção dessa desigualdade, como algumas pessoas acessam lugares e outras não. Então, geralmente, no caso do Carnaval do Rio de Janeiro, são artistas formados muitas vezes na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que não têm uma relação prévia com as escolas de samba e são contratados para conduzir a narrativa e construir a visualidade dessa história”.
Mauro Cordeiro ressalta que nenhum carnavalesco controla e executa todas as etapas do trabalho artístico que produz o desfiles, o que faz do Carnaval um espaço artístico construído a partir de uma grande colaboração e construção coletiva, que envolve grande número de saberes técnicos e ofícios que se comunicam para produzir o espetáculo. Esse próprio sistema, porém, é reprodutor de desigualdades que são estruturais na sociedade brasileira. “Em que condições esse espetáculo é produzido? Quais as condições de trabalho?”, pergunta o antropólogo.
“A informalidade não é só uma questão lateral, é a régua. Falamos da precariedade do trabalho como se fosse uma contradição, mas na verdade a precariedade é a estrutura que produz o trabalho artístico. É a superexploração do trabalho de homens e mulheres nessas estruturas que garante o espetáculo da maneira grandiosa que a gente conhece”, explica, destacando que os desfiles que acontecem na Marquês de Sapucaí cujas imagens circulam o mundo, refletem apenas uma parte pequena, a mais rica do Carnaval, já que a maioria das escolas de samba existentes, mais modestas, desfila na Estrada Intendente Magalhães, na zona norte, num espetáculo popular para os cariocas mas desconhecido do restante do mundo.
A Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), que representa as agremiações do desfile principal, ressalta, funciona como uma entidade privada, que opera sob a lógica do lucro proporcionado pelos grandes eventos. O espetáculo proporcionado pelas escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro ainda envolve a complexidade de unir grandes investimentos das empresas privadas com o apadrinhamento e recursos da contravenção representada pelo jogo do bicho e a parceria e subvenção do Estado.
Mas lá na ponta, na parte invisível da produção do espetáculo, as relações de trabalho são absolutamente informais. “Não existe contrato. São acordos de boca com as direções, com os presidentes das escolas de samba, numa lógica de controle, de coerção do trabalho muito fortes”, afirma o doutorando, que tem conversado com diversos trabalhadores como aderecistas, costureiros, ferreiros, pintores, que trabalham no Carnaval. “Eles se classificam como empreiteiros, numa lógica de que no Carnaval a jornada de trabalho é por empreitada”.
“Então se você é contratado para entregar um carro alegórico, eu contrato você como artista para produzir. Cabe a você gerir sua equipe. Se você vai fazer sozinho, se vai contratar tantas pessoas, essa é uma responsabilidade sua. Os barracões são laboratórios desse novo avanço, desse novo estágio da lógica neoliberla de organização do trabalho, que está sempre limitado pelo calendário do Carnaval, que tem dia e hora para acontecer. E nessa lógica do trabalho por empreitada, há uma remuneração acordada sem nenhuma garantia ou direito”, aponta. “O calote é uma prática absolutamente comum”
Mauro lembra como caso emblemático da fragilidade trabalhista o momento de pandemia de Covid-19. Na impossibilidade de realização dos desfiles de Carnaval devido às condições sanitárias, esses trabalhadores ficaram sem nenhuma condição de manutenção de sua subsistência – lembrando que apesar do desfile ter data específica, a produção acontece durante a maior parte do ano. Segundo Mauro, nem a Liga nem as escolas de samba ofereceram suporte a esses trabalhadores, alegando que não havendo desfiles, não possuíam recursos. Foram outras entidades da sociedade civil e campanhas de solidariedade que ajudaram esses setores a garantir condições mínimas para a subsistência.
Mas retomadas as atividades, a mesma estrutura se impõe. “Se produz o maior espetáculo da Terra, que movimenta milhões de reais, sendo que os trabalhadores são desvalorizados, em condições muito precárias de estrutura, em que pessoas dormem nos seus locais de trabalho para conseguir entregar sua empreitada contratada num tempo menor e poder pegar outra empreitada para gerar mais recursos”, critica o pesquisador carioca.
Não há garantias mínimas mas tampouco há uma fiscalização efetiva sobre essas condições de trabalho. Quando há denúncias e fiscalizações do Ministério Público e do Trabalho (MPT), por vezes as escolas ficam sabendo antecipadamente e avisam seus trabalhadores para não comparecerem para evitar problemas.
Em fevereiro deste ano, mais uma tragédia aconteceu. Uma fábrica de fantasias para uma escola de samba pegou fogo em Ramos, bairro da zona norte em Ramos, causando a morte de um funcionário e deixando outros feridos. “Você tinha trabalhadores dormindo no local de trabalho, diante de uma quantidade imensa de materiais inflamáveis, num local onde não tinha sinalização nem estruturas e saídas de emergência”, questiona o pesquisador, destacando que homens e mulheres negros são os mais expostos a essas vulnerabilidade.
Mas seu trabalho de campo tem ajudado a entender os motivos que fazem com que esses trabalhadores permaneçam sendo parte dessa cadeia produtiva, mesmo que precária, violenta e de grande controle. “O discurso da maioria dos trabalhadores não é de negar, de uma alienação dessa violência e precariedade, eles as reconhecem. Mas o que eles reivindicam é a possibilidade de exercer um trabalho que sonharam, que preenche a vida deles de sentido, pela relação com a escola de samba, pela relação de poder fazer arte, viver de sua arte e cultura. Eles não querem apenas sobreviver, mas a partir do seu trabalho também construir sentido de pertencimento, por isso eles permanecem neste espaço da cultura.
Para o antropólogo, eventos como o Carnaval são importantes para pensar o quanto a cultura é fundamental para nossa existência, mas também nos podem fazer pensar sobre a valorização do trabalho. “São esses trabalhadores que produzem o espetáculo e eles precisam ter condições dignas de existência para continuar produzindo e existindo, sobretudo porque há uma lógica de geração de recursos a partir da cultural, gera muito recursos para a cidade do Rio de Janeiro, mas as pessoas que produzem essa cultura continuam em condições muito precárias de existência”, reflete.