Sábado, 27 Abril 2024

Histórias de Rubem

Histórias de Rubem

Texto: Henrique Alves

Fotos: Rogério Medeiros 
 
O historiador Maciel de Aguiar e o jornalista Rogério Medeiros têm algumas histórias com Rubem Braga. É um privilégio: nas celebrações dos 100 anos do cronista, mesmo na imprensa nacional, foram poucos os depoimentos de quem conviveu de perto com Rubem e, mais além, entendeu porque aquele homem de expressão severa elegia os passarinhos e desdenhava os condes. 
 
Esta matéria deveria ter saído quando da abertura da exposição Rubem Braga - O Fazendeiro do Ar, em 12 de janeiro, data do nascimento de Rubem, no Palácio Anchieta. Só que a abertura foi adiada, o que nos forçou também a adiar a matéria. Mas como a exposição abre já no próximo dia 19, ei-la, pois. 
 
Maciel contava apenas 16 anos quando deixou São Mateus rumo ao Rio de Janeiro no turbulento junho de 1968. O Rio fumegava politicamente; a Passeata dos 100 Mil, o mais impressionante ato popular contra a ditadura, aconteceria dali a poucos dias e nela o garoto iria panfletar cópias mimeografadas de um poema de sua autoria, Saudação Estudantil, a mando do Partido Comunista Brasileiro. 
 
Ele desembarcou no Rio e seguiu para Ipanema. Eram cerca de 16h quando chegou ao já mítico edifício da Rua Barão da Torre. Não esperava nem ser recebido. Procurou sensibilizar o cronista com o argumento da origem em comum. Deu certo. Mas ainda assim Rubem fuzilou-o com interpelações: “O que você quer aqui no Rio? Por que não fica lá?”. 
 
Em verdade, Maciel não era rigorosamente um desconhecido para Braga. O pai, marinheiro, esteve na Segunda Guerra e viveu a Lapa dos anos 40. Ali conheceu Rubem Braga. Quando aos 12 anos o filho lhe contou que queria ser jornalista, retrucou: “Isso aí é com Rubem Braga. Hoje são os dois que sabem contar história: Rubem Braga e Jorge Amado”.   
 
 
Quando Maciel citou o pai, a distância entre ambos diminuiu mais um tanto: “Ih, seu pai era um doido, rapaz”. E então Rubem pediu notícias de São Mateus, do porto, mesmo estando aquele jovem mais absorvido pelos versos que fazia contra os militares que pelo histórico porto de sua terra natal. Quando mostrou-os a Braga, ouviu uma advertência: “Você vai ser preso com isso”.  
Não foi. Maciel viveu os primeiros meses de Rio de Janeiro em pensões modestas. Eram tempos difíceis - e o eram ainda mais para um filho das barrancas do Cricaré, no distante e obscuro norte do Espírito Santo. Rubem, que arrostou crises financeiras por toda a vida, foi fundamental nos primeiros anos dele na capital fluminense.
 
O bardo mateense almoçou não poucas vezes na casa do cronista cachoeirense. Mais que isso, por oito meses Maciel comeu e dormiu à mercê de um livro de Rubem Braga lançado em 1957: A Cidade e a Roça.
 
A história: Maciel disse a Rubem que queria ser jornalista e escritor. Pediu-lhe dicas. E recebeu a única dica de escrita em mais de duas décadas de amizade: que lesse Machado de Assis. 
 
Logo a Maciel, que até ali só travara conhecimento de Iaiá Garcia (1878), romance “menor” (muitas aspas) que encerra o ciclo romântico do escritor e está aquém do Machado que fincaria os pés no panteão da literatura pátria justamente a partir do romance seguinte, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881).
 
Leu Machado de Assis. Rubem então deu-lhe A Cidade e a Roça. “Leia e volte daqui a uma semana”, determinou. Maciel leu o livro três vezes; voltou enlevado pelas crônicas. “E agora?”. “Agora você vai vender os livros pra mim. Você não vende os seus?”.
 
Com uma carta de autorização para a venda em mãos, Maciel bateu perna por ruas, praias, escolas, fábricas, livrarias, e conseguiu vender todo o estoque que Rubem tinha em casa. Os termos do negócio lhe garantiam a metade da receita. Para quem não dispunha nem de lugar fixo e cujo patrimônio se resumia a um saco de roupa, uma máquina de escrever e o mimeógrafo a álcool, estava ótimo.
 
A admiração que Rubem Braga causava em seus pares mais destacados às vezes gerava boas anedotas, uma das quais Rogério presenciou numa visita de Rubem ao Jornal do Brasil. Na saída, encontra Armando Nogueira no elevador. “Mestre Rubem!”, exclama Nogueira. A seguir, num gesto tão solene quanto inusitado, começa a passar as duas mãos pelos braços do mestre. “Hoje meu texto melhora!”, riu-se Nogueira.
 
A Maciel, Rubem não forneceu propriamente dicas de aprimoramento da escrita. Ele lia os poemas e textos e soltava um breve e neutro “Tá bom”. Sempre lacônico, só lia e falava “Tá bom, não mexe que tá bom”. Maciel nunca soube se esse “tá bom” significava “tá ruim” ou se era aquele “tá bom” de puro enfado, dito apenas para despachar o sem-noção.
 
Com Rubem na TV Globo - o cronista fazia matérias e crônicas para o Hoje (atual Jornal Hoje) - Rogério tinha uma dúvida: como era escrever para a TV? Dúvida legítima: Rubem tinha uma vida inteira de textos para o jornalismo impresso. “É simples. Eu escrevo, depois leio em voz alta. Se entrar bem nos ouvidos, é o texto para a televisão”. 
 
Tudo era simples para ele. Um dia legou a Rogério a manha do ponto-e-vírgula: “Se você tem duas frases que não quer cortar, põe um ponto e vírgula no meio e pronto”. 
 
Três anos após o primeiro encontro, Maciel tentava arrumar um emprego de repórter freelancer no jornal O Globo e soube que um grupo sairia para entrevistar Rubem, sabidamente avesso à imprensa. Mas foi Rubem dar com o amigo entre o grupo que portas naturalmente cerradas se abriram - e Maciel conquistou a vaga. 
 
Entre o início e o final dos anos 70, quando Rubem arrumou um emprego de redator para Maciel na TV Globo, ambos se falavam com frequência e cautela. Maciel estava na clandestinidade, escrevendo poemas contra a ditadura. “Ó, você vai se f..., hein”, advertia Rubem. Maciel sempre ligava por volta de 13h30, quando Rubem almoçava. Se levasse um esporro, era sinal de que tudo ia bem e ele podia pintar na Barão da Torre. 
 
A dupla compartilhava de um código em especial. Rubem ligava para a pensão de Maciel no Catete e perguntava ao dono, que estava a par das cifras: “Tem capixaba morando aí?”. “Não tem capixaba morando aqui, não”, respondia o outro. Maciel decodificava a mensagem quando vinha o recado de que ligaram procurando por um capixaba. 
 
Maciel fundou o Centro Cultural Porto de São Mateus em 1983 para resgatar o peso histórico do local. Quando foi ao apartamento de Rubem anunciar que iria sair da TV Globo, deixar o Rio e voltar para São Mateus, levou um pito daqueles; Rubem desaprovou o retorno a “essa mediocridade que é o Espírito Santo”. 
 
A plêiade de intelectuais que integrava a comissão nacional da entidade era pra lá de respeitável: Gilberto Freyre, Chico Buarque, Fernando Gabeira, Ziraldo, Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Barbosa Lima Sobrinho, Darcy Ribeiro. Todos escreviam textos sobre a importância do porto. Rubem Braga era o presidente de honra.
 
Rubem cumpriu um outro papel fundamental: abriu caminho para o porto dentro da TV Globo, que ia a São Mateus fazer matérias ou cobrir festivais. 
 
Quando mais tarde o Teatro Anchieta foi inaugurado, São Mateus passou a receber atores globais: Dina Sfat, Cecil Thiré, Dercy Gonçalves, Chico Anysio, entre outros. Quando Maciel levou Tônia Carrero, até sua mãe sofreu com Rubem Braga. 
 
Rubem e Tônia, então uma mulher casada, tiveram um caso que nasceu e se extinguiu numa temporada em Paris nos anos 40. Rubem apaixonou-se irremediavelmente, a jovem Tônia era estonteante. O caso não, digamos, evoluiu tanto, mas a partir dali Rubem sempre zelaria pela atriz.  
 
Foi uma perturbação. Rubem sempre telefonava para a mãe de Maciel para falar com ele e deixava o recado: “Manda ligar pra Rubem”. Maciel liga para Rubem. “Você tá levando a Tônia Carrero?”. “Tô. E daí?”. “Aí só tem índio, rapaz”. 
 
O velho Braga desesperou-se, perguntava pelo hotel de Tônia, o transporte para Tônia. Tudo. Até que mandou um dinheiro, queria rosas no camarim. Rosas vermelhas. O camarim foi, então, coberto de rosas vermelhas e nada foi revelado à atriz. Nem precisou. Tônia chegou, olhou e se voltou para Maciel: “Diga a ele que eu adorei”.
 
A filha do jornalista Rogério Medeiros lutou dois anos contra um câncer; Rubem Braga resistiu por alguns meses. Nos anos 80, Rogério licenciou-se do Jornal do Brasil para acompanhá-la no Hospital do Câncer em São Paulo.
 
Durante esses dois anos, não se passaram 10 dias sem que Rubem telefonasse. Sempre econômico, perguntava sobre o quadro da menina, a quem o tratamento por vezes impunha agonias inomináveis. Dividiu momentos de esperança e desesperança, sem nunca, no entanto, oferecer um certo tipo de conforto que o que tem de reanimador, tem de fantasmagórico. A vitória nunca é certa contra o câncer.
 
O enterro foi em Vitória. Após alguns dias, Rogério, num gesto de gratidão, foi ter com pessoas fundamentais nessa história. Foi à casa de Rubem no Rio. “Você tinha informações para saber que minha filha não ia sobreviver. Então, vim aqui te agradecer”, disse-lhe. “Quero fazer uma confissão como pai: foi uma luta em vão. Porque um pai que quer salvar a filha de qualquer maneira não mede as consequências”.
 
Rubem foi diagnosticado com câncer de laringe no início de 1990. Quando soube, Rogério zarpou para o Rio. Disse ao cronista que ia levá-lo para São Paulo. Mas Rubem rejeitou a ideia com uma resposta surpreendente: “Você? Você é a pessoa menos indicada. Eu não vou tomar nada”.
 
Rogério lembrou-se, então, da história da filha, das dores intoleráveis que o tratamento infligia. Com a filha no caixão, sentiu que o câncer era dor, o rosto da filha fora o tempo todo desenhado pelas contrações da dor. 
 
Como prometera, Rubem nada tomou; só oxigênio, quando precisava. O cronista sucumbiu em 19 de dezembro de 1990. 
 
O naturalista Augusto Ruschi foi o vértice que uniu Rubem e Rogério. Este, por incumbência do JB, estava toda semana com Ruschi; o jornal considerava-o uma figura extraordinária. Ruschi era mais importante que o Espírito Santo inteiro para o JB. Assim é que quando Rubem vinha ao estado, os dois sempre subiam para Santa Teresa.  
 
Em meados dos anos 80, Ruschi encarregou Rogério de fazer sua biografia, já que ele o acompanhava desde o final dos anos 60. Rogério ponderou, no entanto, que a honrosa tarefa cabia a Rubem, o pioneiro na cobertura e divulgação jornalísticas do trabalho do naturalista, ainda nos anos 40. 
 
Para piorar, o cargo de vice-prefeito de Vitória assoberbava Rogério. Rubem encontrou uma solução para o impasse: empacotou todo o material que tinha sobre Ruschi, despachou para Rogério e, a cereja do bolo, sugeriu a Rogério que escrevesse em nome dele, Rubem Braga. 
 
Claro, Rogério declinou. Com que cara iria fazer tamanha temeridade? “Você está me impedindo de fazer minha única biografia”, lastimou Braga. “Até hoje eu só fiz crônicas [sobre Ruschi] e mais nada”. Mas não teve jeito: no final, Rogério despachou todo o material de volta. 
 
Apenas crônicas, porém valiosas crônicas. Rubem salvou Ruschi jornalisticamente. Se dependesse da imprensa capixaba, que o destratou como um marginal e embusteiro, coitado dele. Nas crônicas do amigo e defensor declarado, Ruschi ganhou a devida importância que tinha para a natureza.
 
Pertence a Rubem um belo prognóstico feito a Rogério. “Em meados do século XXI o único capixaba que será conhecido não sou eu, nem você, nem ninguém. Em meados do século XXI o único capixaba que será conhecido é Augusto Ruschi”.
 
 
Certa ocasião, Rubem sofreu com o governador Eurico Rezende (1979-1983), que era uma boa alma, mas tinha um zelo intragável pelo cargo. O cronista se atrasara para uma solenidade em que estaria o comandante estadual e, como resultado, não foi recebido. 
 
Doutra feita, Rubem fez crônica, crítica, em que defendia a recuperação do Porto de São Mateus, naquele período em que Maciel de Aguiar conduzia seu Centro Cultural. O texto mexeu com os brios do prefeito Amocim Leite, homem pouco cultivado, por assim dizer. 
 
Dias depois, Rubem combina de se encontrar com Rogério numa festa de Cachoeiro. Não passou muito tempo após chegarem e um esbaforido velho Braga volta do hotel: “Rapaz, aquele Amocim está atrás de mim. Fala pro Maciel segurar esse cara, senão eu largo tudo”.
 
Por essa mesma época, Rubem chamou Maciel para ir a Cachoeiro de Itapemirim. Resmungou a viagem inteira: “Esse Ferraço!”. E calava-se. Mas, com o olhar perdido, tornava a soltar: “Esse Ferraço!”. Maciel sem nada entender. 
 
Chegaram e se dirigiram ao local onde Rubem era esperado para uma solenidade com a presença do então prefeito e hoje deputado estadual Theodorico Ferraço. O lugar estava lotado. 
 
Uma, duas, três vezes, Ferraço pronunciou um “Rubens” durante a sua fala e, a cada vez, Rubem olhava para um lado, se ajeitava na cadeira e olhava para o outro, procurando o tal “Rubens”. Na quarta, ele irrompeu: “Olha aqui, seu Theodorico de Assis Ferraço, eu sei qual é o seu nome. E você tem a obrigação de saber que eu não sou plural. Eu sou Rubem. Rubem Braga”. Pano rápido.

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