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Iphan cobra proteção de cemitério histórico de escravizados em São Mateus

Relatórios apontam destruição de área ligada à líder negra Constância D’Angola

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) solicitou o isolamento emergencial e paralisação de atividades em uma área arrendada na histórica Fazenda Cachoeira do Cravo, em São Mateus, no norte do Espírito Santo, após constatar indícios de destruição de um antigo cemitério de pessoas escravizadas, com fragmentos ósseos humanos expostos em meio à terra revolvida por máquinas. Documentos de vistoria apontam que o sítio é reconhecido pela tradição oral como o local onde estaria sepultada Constância D’Angola, conhecida por sua luta pela libertação e fuga de outros escravizados da região.

Secom/ES

Com base nos relatórios técnicos elaborados pelo arqueólogo Júlio Cesar da Silva Marins, que examinou o local, o instituto identificou que as intervenções na área do antigo cemitério de pessoas escravizadas na Fazenda Cachoeira do Cravo estariam vinculadas às empresas Suzano (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria) e Macplan Urbanismo e Construção Ltda. Segundo o documento, “a intervenção com maquinário aparenta estar vinculada às empresas” e, até o momento, “não foi localizado qualquer processo formal vinculado ao Iphan” que autorizasse as obras.

Após duas visitas técnicas realizadas nos últimos dias 10 e 13 de julho, o profissional apontou “ameaça concreta ao patrimônio arqueológico, histórico e identitário brasileiro, especialmente no que diz respeito à memória da população negra escravizada e à herança material da diáspora africana no território capixaba”. O órgão requer a demarcação do terreno com sinalização visível, indicando a presença de patrimônio arqueológico e a proibição de intervenções não autorizadas.

O superintendente do Iphan no Estado, Joubert Jantorno Filho, solicitou ao Centro Nacional de Arqueologia (CNA), em Brasília, a análise urgente sobre a pertinência de cadastro do sítio arqueológico Fazenda Cachoeira do Cravo e encaminhou os dois relatórios técnicos de visita. Ele também acionou os Ministérios Públicos Federal e Estadual (MPF e MPES); a Prefeitura de São Mateus e suas secretarias de Cultura, Meio Ambiente, Obras e Planejamento; o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (Idaf); o Conselho Municipal de Cultura; e as empresas Macplan e Suzano – esta denunciada há décadas por promover violações contras as comunidades quilombolas do antigo território do Sapê do Norte, que compreende os municípios de São Mateus e Conceição da Barra.

Reprodução

A Superintendência do Iphan questionou a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e as empresas responsáveis pelas intervenções se as obras estão vinculadas a algum empreendimento e se houve manifestação prévia do Iphan. O Ministério Público Federal e Estadual foram comunicados sobre o caso a fim de investigar eventuais irregularidades e buscar formas de mitigar ou compensar possíveis danos ao patrimônio. 

O Iphan foi acionado pela vereadora Valdirene Bernardino Pires (PT), que relatou ter recebido denúncias sobre a destruição do sítio arqueológico e solicitou uma uma visita técnica para verificação dos fatos e adoção de providências. Durante a primeira visita, o arqueólogo designado foi acompanhado por ela e pela gestora cultural Mônica Porto, coordenadora da Casa de Constância D’Angola, que atua como guardiã da memória afrodescendente da região. Elas contribuíram para o levantamento de dados comunitários, relatos da história oral da região e articulação com moradores e testemunhas. “É um espaço sagrado que nunca recebeu a devida valorização histórica e agora corre o risco de ser apagado pela negligência”, ressalta Valdirene.

A segunda visita ocorreu a pedido do chefe da Divisão Técnica do Iphan, Yuri Batalha de Magalhães, para complementação das informações levantadas e confirmação em campo da existência do sítio arqueológico. Ele recomendou o registro da área e que as empresas fossem notificadas sobre a presença do sítio e orientadas a paralisar imediatamente as obras até que fossem tomadas as devidas medidas para a proteção do patrimônio cultural. Nessa inspeção, foi confirmada a presença de fragmentos ósseos humanos expostos, em meio à terra revolvida por maquinário pesado. “O solo encontra-se revolvido, com perda de camada superficial em alguns trechos e mistura de material moderno e arqueológico”, destacou o documento.

Reprodução

De acordo com o arqueólogo do Iphan, moradores relataram que a área foi arrendada para a empresa Suzano, com autorização do Idaf. O relatório técnico inclui fotografias que registram uma placa de licenciamento em nome da Suzano, emitido pelo Idaf, além de indícios de uso recente de retroescavadeiras e outros maquinários pesados no entorno do cemitério tradicional — sem qualquer sinalização, delimitação ou medida visível de proteção à área.

A não realização de qualquer estudo arqueológico prévio, aliada à ausência de licenciamento ambiental e ao uso de maquinário pesado diretamente sobre a área funerária, “configura violação à legislação de proteção ao patrimônio cultural”, destacou o profissional. Ele aponta que as ações infringem diretamente a Instrução Normativa Iphan nº 01/2015, que regulamenta o licenciamento ambiental em áreas com bens arqueológicos, o artigo 216 da Constituição Federal, que trata da proteção do patrimônio cultural brasileiro, e à Lei Federal nº 3.924/1961, que dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos do país.

“As imagens obtidas durante a vistoria reforçam a gravidade da situação” e evidenciam o “grau de descaracterização já promovido”, conclui o parecer, que indica que o sítio arqueológico sofreu impactos significativos, sendo necessária a adoção de medidas urgentes para evitar sua completa destruição.

‘Trajetórias de resistência’

A área onde hoje se encontra o sítio funerário, chamado popularmente de “Cemitério dos Escravos”, ou “Cemitério Particular da Fazenda Cachoeira do Cravo” está localizada em terreno pertencente à antiga estrutura fundiária de uma propriedade escravocrata, ativa até meados do século XIX. A fazenda foi fundada na segunda metade do século XIX pelo major Antônio Rodrigues da Cunha, também conhecido como Barão de Aymorés, e representou um centro de produção de açúcar, cafeicultura e atividade comercial fluvial, com uso da mão de obra escravizada. O sítio antigo cemitério é apontado pela tradição oral como o local de sepultamento de dezenas de pessoas escravizadas que viveram e morreram na área.

Entre essas histórias, ganha destaque a de Constância de Angola, mulher que teve seu filho morto de forma brutal, queimado vivo em uma fornalha por ordem da senhora Francelina Cardoso Cunha. Segundo os relatos, Constância escapou da fazenda após o assassinato e atuou em movimentos de resistência com lideranças quilombolas como Viriato Cancão-de-Fogo, ajudando outras pessoas a fugir da escravidão. Ela teria sido  morta em confronto com o capitão-do-mato José de Oliveira, conhecido como “Zé Diabo”, e enterrada ao lado do filho, com autorização do major Antônio da Cunha. Sua memória é lembrada por iniciativas como a Casa de Constância D’Angola e reconhecida como um marco da resistência negra no Espírito Santo.

A Fazenda Cachoeira do Cravo é reconhecida pelo Iphan como um território de memória negra, ligado a trajetórias de resistência e à construção da identidade local. Segundo a análise arqueológica, os vestígios encontrados na área – materiais e imateriais – revelam camadas de memórias relacionadas à exploração econômica, à dor e à resistência.

A área é protegida por legislação municipal específica: a Lei nº 39/1989, de 24 de agosto de 1989, que institui o Conjunto Histórico “Fazenda Cachoeira do Cravo”, no distrito de Nestor Gomes, e define, como bens que compõem esse conjunto: “a Casa da Fazenda do Cel. Cunha Júnior, a Casa da Venda do Barão de Aymorés (antiga pila de café e usina de açúcar), o cemitério dos escravos e a ponte da Cachoeira do Cravo”.

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