Quarta, 24 Abril 2024

O artista autista e a indústria do entretenimento

wally_desenhos_Avos_vitor_Taveira Vitor Taveira

A primeira lembrança que Wallisson Almeida tem de desenho é de brincar com seu pai de fazer formas nas areias da praia próxima de sua casa. Tinha quatro anos de idade. Pouco depois ganhou papel e lápis de cor e começou a transpor para eles fotos de modelos que via nas revistas. Aos 18 anos, o jovem de Porto Grande, a última comunidade de Guarapari na divisa com Anchieta, vê sua arte começar a sair de sua casa simples, à beira da Lagoa Maembá.

Numa casas simples à beira da Lagoa Maembá, Wally desenvolve sua arte autodidata. Foto: Vitor Taveira

As primeiras obras foram vendidas nos últimos meses, nos quais também realizou as primeiras pinturas em muros, em Meaípe, a comunidade vizinha em Guarapari, e Maembá, vizinha do lado de Anchieta. Não é fácil para Wally, que é portador de autismo, embora em um grau leve, que permite se comunicar relativamente bem mas não sem alguma dificuldade de interação. Totalmente autodidata, pese o talento evidente, teme sair da pequena comunidade em que nasceu para estudar ou se aprofundar no desenho.

Além dos poucos recursos financeiros da família, traz na memória o bullying sofrido na escola. Chegou a reprovar nas séries primárias, mas deve terminar o Ensino Médio no próximo ano, agora recebendo a devida atenção como aluno especial e também grande incentivo das professoras e de vizinhos para desenvolver seu talento no desenho e pintura.

No início da pandemia do coronavírus, sua arte ganhou como aliada a designer de interiores Tânia Vivacqua. Nascida em Vitória e frequentadora de Porto Grande há 30 anos, ela fixou residência no local há dois anos, mas só foi saber do talento de Wally há poucos meses. Entusiasta, ela acompanha Wally nos convites para pintar e criou uma página no Instagram para divulgar sua obra. Com ajuda da irmã, o artista também está com um canal no YouTube em que mostra sua produção de desenhos, feitas em seu quarto ou na sala da simples da casa amarela em que reside com a família, com o privilégio de ter uma linda lagoa no quintal, tendo garças como as vizinhas mais próximas.

O quarto e a sala da casa da família são ateliê de Wally. Foto: Vitor Taveira

Também moradora de Porto Grande, a historiadora Thais Helena Moreira lembra que o bairro tem uma das menores rendas per capta de Guarapari. "É uma comunidade pobre, mas digo que de uma 'pobreza digna'. Aqui as pessoas moram em casa própria, quase ninguém paga aluguel, tem banana e aipim no quintal, a pesca na lagoa serve como alternativa de complementação e subsistência", aponta.

Wally é filho de um jardineiro e uma faxineira que trabalham em uma casa em Meaípe. Muitos dos moradores de Porto Grande vivem do comércio e do turismo e outra parte na construção civil. O clima no local ainda é de uma bucólica vila de pescadores, da qual o jovem Wally ainda lembra de que quando criança as casas não tinham muros, apenas divisórias feitas com cercas de hibisco. Agora, os muros do progresso também se mostram como oportunidade para a exposição da arte, de modo que a comunidade vem tentando se mobilizar para conseguir recursos para compra de materiais para pinturas de Wally e quem sabe um mutirão de artistas convidados.

Wally desenhou o rosto dos avôs inserindo indumentária indígena. Foto: Vitor Taveira

Segundo Thais Helena, a localidade de ocupação recente pela atual comunidade, provavelmente esteve na área dos aldeamentos jesuítas de Guaraparim ou de Rerigtiba (atual Anchieta). Wally e sua família, assim como outros moradores, trazem evidentes nos traços a descendência indígena. Isso o motivou a enveredar por pinturas realistas de imagens de indígenas brasileiros e norte-americanos. Também desenhou seus avós e a irmã, acrescentando elementos da indumentária indígena.

Das pinturas realistas, ele começou a inserir seus traços e construir um desenho criativo, como o que fez do apresentador de TV Luciano Huck, de quem sonha receber uma visita. Também começou a criar aliando rostos humanos e elementos geométricos e coloridos, assim como inicia com a pintura de natureza como fez no muro em Meaípe.

A primeira obra em parede foi um singelo desenho infantil na parede da casa de Tânia Vivacqua, pelo qual conseguiu pela primeira vez fazer um trabalho remunerado. Todas suas obras estão à venda, menos uma pintura de Marielle Franco, que fez para um trabalho escolar do Dia da Consciência Negra, no ano passado. Ele conta que o quadro contou com ajuda dos colegas que buscaram as ripas construir a tela e que o trabalho tem um valor sentimental.

O dinheiro que ganhou com pinturas na casa de Tânia e a venda de alguns quadros, ele está guardando para o futuro.

Mural em Meaípe retrata o manguezal do entorno da pintura. Foto: Vitor Taveira

Entretenimento do outro lado da lagoa

Chegando em sua casa, Wally aponta orgulhoso para a área da lagoa, um pouco abaixo do imóvel, cuja limpeza realizou sozinho num trabalho de três anos. Do outro lado dela, está sendo instalado o Parador P12, famoso beach club catarinense que terá uma filial local trazida por empresários capixabas, com promessa de capacidade para até 15 mil pessoas. Mesmo com a incerteza do momento de pandemia, o local anuncia nas redes sua festa de Réveillon, para a qual diz que seguirá todos os protocolos sanitários.

Apesar das promessas de emprego, o empreendimento desagrada parte dos moradores de Porto Grande. O primeiro efeito colateral foi sentido com o desmatamento da região, que segundo alegam levou animais em fuga, como cobras, a aparecer nas residências. A preocupação com o barulho, a geração de lixo e o grande fluxo de pessoas ao lado de um local tão pacato é grande, embora a empresa afirme seguir todas as normas.

Estranhamente, as obras de mitigação ambiental não se dão ali no entorno da comunidade, e sim há cerca de cinco quilômetros dali, em Nova Guarapari, com investimentos de R$ 600 mil em recuperação da restinga justamente nas praias em que já ocorre há alguns anos esse processo de recuperação. Enquanto isso, no caminho entre Meaípe e Porto Grande, a pista de asfalto que tomou a restinga que separa e conecta a Lagoa Maembá e o mar está cedendo mesmo após repetidas obras.

Em alguns trechos, a violência do mar sem vegetação que o detenha já levou o acostamento e parte de uma das pistas, obrigando que os carros tomem o outro acostamento para poder passar diante de inúmeras sinalizações. A preocupação é evidente com um grande fluxo de carros num horário noturno e em local de grande consumo de álcool diante de uma pista literalmente desabando.

A instalação da P12 praticamente em frente à casa de Wally parece explicitar o drama cultural de Guarapari. As iniciativas de entretenimento para turistas com atrações nacionais lucram e prosperam, embora vivam apenas da sazonalidade do verão e feriadões. Enquanto isso, os artistas genuínos do município que vivem todo ano ali pouco ou nada têm de apoio e incentivo. Em meio à multidão de turistas, onde estará Wally?

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