Sexta, 19 Abril 2024

O Ticumbi da superação

O Ticumbi da superação
A apresentação de gala do Ticumbi de São Benedito de Conceição da Barra, que ocorre sempre no dia 1 de janeiro, foi uma dos melhores dos últimos anos, e haverá de ser inesquecível pela própria sociedade negra da região, a quem a festa sempre foi destinada.
Tudo parecia tão perfeito. Até aplausos eles receberam, especialmente no exato momento em que o rei de Congo, numa clara intenção de revide à secular discriminação dos negros na região, proclama, ao fim da apresentação, a beleza de sua raça: “Viva a nossa bela sociedade!”.
E olha que a apresentação deste ano levantava dúvidas se corresponderia às expectativas, diante do delicado estado de saúde do seu velho mestre, Tertulino Balbino, o mestre Terto, com os olhos inteiramente lesionados por um glaucoma, que lhe reduz em muito a visão.





 

Mestre Terto, no entanto, se superou e regeu a apresentação com o mesmo ímpeto dos 61 anos que está à frente do festejo, como o eterno condutor de uma das maiores e mais tradicionais manifestações culturais da raça negra no Espírito Santo.
O velho mestre não se privou sequer do estafante ensaio geral à margem do rio Cricaré, na virada de 30 para 31 de dezembro, que antecede a apresentação do dia 1 de janeiro na porta da igreja de São Benedito, na sede do município de Conceição da Barra. 
É preciso destacar que o ensaio é puxado e exige dos participantes. Atravessa a noite e segue até o sol raiar, intercalado, pelo som do forró de sapezeiro, originalíssima atividade musical nascida no sertão capixaba, consistindo numa trinca nos pandeiros, com uma sanfona de fundo, tirando versos para serem dançados pelos pares.
A parte seguinte ao ensaio geral é a viagem em barcos de pesca à ilha das Barreiras, entre Conceição da Barra e São Mateus. O cortejo vai buscar a pequena imagem do São Benedito do Córrego das Piabas, considerada a mais milagrosa da região.
Essa imagem fez parte da luta dos escravos da região na busca de sua libertação, usada que foi como fator de estímulo à luta deles por uma das principais lideranças dos escravos que a conduzia num embornal como uma espécie de cobertura religiosa no confronto com a jagunçada das elites escravocratas.  
A história do sertão, que é passada de geração em geração, dá conta que o seu condutor, Benedito Meia Légua, por ser identificado pelas elites escravocratas como um dos principais comandos dos escravos, recebeu especial perseguição pelos jagunços farejadores com a missão de eliminá-lo da luta.  
Para fugir a essa perseguição, Meia Légua mudou a sua estratégia de ação: passou a comandar a luta à noite e esconder-se de dia. O que fazia dentro de uma árvore da Mata Atlântica, conhecida como Farinha Seca, oca por dentro. Até o dia em que uma delação levou ao seu esconderijo um grupo de jagunços que tamparam as duas bocas da Farinha Seca, tocando fogo e queimando o corpo dele que virou cinzas em pouco tempo, o mesmo não acontecendo com a imagem que estava em seu poder.
Para completar o ato, os mesmos jagunços que operaram a sua morte lançaram a imagem do santo no Córrego das Piabas, que mais tarde seria recolhida por pescadores, que o introduziriam como padroeiro de sua colônia de pesca, onde se encontra até os dias presentes.   
História à parte, quem viu o mestre Terto nessa jornada na busca desse São Benedito do Córrego das Piabas, não dava conta daquele personagem que passa boa parte do dia na sala de sua casa sem movimentação, grudado num rádio e aproveitando-se desse tempo para produzir as toadas das próximas apresentações do Ticumbi.
Nessa última apresentação chamou a atenção a roda viva, que na sequência da apresentação serve as criticas, registrando o descaso da delegacia de polícia na apuração da invasão da sede da Comissão de Folclore, levando a histórica viola do lendário violeiro Chico Dantas que, dos anos 40 aos 70, destacou-se como um dos melhores violeiros da  história do Ticumbi.   
Voltando às condições de saúde do mestre Terto: quem partilhou com ele dos seus momentos de imobilidade em sua casa, meu caso, e o reencontrou em plena regência do seu Ticumbi, achou que ele apoderou-se de uma força acima de suas posses, pela mistura, mais do que clara, em seus movimentos de regente, da sua velhice (83 anos) a fogosidade da sua juventude. Eu, então, que o vejo atuando desde os anos 60, levado pelo barrense Hermógenes Lima Fonseca, com quem compartilhei a condição de vassalo do grupo, tive a exata noção de que não há idade, e muito menos doença, capaz de interromper o compromisso de Mestre Terto com São Benedito. 
Não chego a dizer que se trata de alguém em missão religiosa pela terra, mas que na hora de comandar os devotos de São Benedito do Ticumbi, independe o seu estado de saúde, e a cada ano, há sempre um desempenho melhor. E jamais deixa de partilhar com os seus mortos. Pois ao final da cada apresentação do dia 1 de janeiro, eles vão ao cemitério local para um toque de gratidão ao companheiro Dadáco (que integrava o Ticumbi) extensivo ao seu vassalo, lá também enterrado, o folclorista Hermógenes Lima Fonseca.
Essa reverência prestada a Hermógenes foi o que ele sempre desejou e até idealizou. A propósito, na ocasião do sepultamento de Hermógenes, o seu caixão foi conduzido só por integrantes dos grupos de folclore, devidamente parlamentados e sob a batida do tambor surdo do Alardo de São Sebastião. Na entrada do cemitério, o Ticumbi fez um ato de recomendação à alma do folclorista a São Benedito. Na hora do caixão descer à sepultara, foi coberto de pétalas de rosas pelas pastorinhas (grupo de folclore de meninas extremamente religioso), sob versos dos principais tiradores dos grupos presentes.
Lembrar das homenagens póstumas ao Dadáco, como a de Hermógnes, dá a exata noção de como o Ticumbi constrói a sua própria história. A longo dessas décadas muitos já escreveram sobre eles, como o professor Guilherme Santos Neve, o folclorista Hermógenes Lima Fonseca, o historiador Maciel de Aguiar, o jornalista Enio Ardohain e esse velho jornalista que faz mais um registro. Todos esses escritos devem se respeitados. Neles, cada um dos escribas pode contar a sua própria história com a emoção de quem a viveu e com os sentimentos e visões próprias que desenvolveram.
O que, felizmente, o próprio mestre Terto incumbiu-se de fazer e o fez na inconfundível escrita do português arcaico, que ainda serve de comunicação entre eles, embora haja quem, como o historiador Maciel de Aguiar, assinale que se trata mesmo do português caboclo. De uma forma ou de outra, ele foi utilizado pelo mestre Terto para escrever a história de sua gente. O registro de Terto, diga-se de passagem, segue aguardando publicação.
Esse Ticumbi, que em pleno século XXI permite uma releitura constante de sua existência, a partir, inclusive, do período escravocrata até a chegada da Aracruz Celulose (que agora virou Fibria), invadindo os seus territórios, causando uma expulsão de mais de 50 mil negros de suas pequenas propriedades, transformando minifúndios em latifúndios. Com enormes prejuízos à cultura dessas comunidades, já que foram responsáveis diretos pelo desaparecimento de mais de 150 grupos de Reis de Boi e de três de Ticumbis de negros, sobrevivendo tão somente este, comandado por Mestre Terto, que tem sabido lidar com as perseguições que sofrem os seus integrantes, principalmente aqueles que têm liderança, como ocorreu, há um tempo não muito distante com Berto Florentino. O membro do Ticumbi teve sua propriedade invadida por um batalhão da Polícia Militar a serviço da empresa Aracruz, levando ele e seus familiares (Berto é pai de 16 filhos), debaixo de violência, ao cárcere em São Mateus.
Boa parte da sobrevivência do que ainda resta da cultura negra na região norte do Estado tem como agente de sua preservação esse Ticumbi de São Benedito de Conceição da Barra, cuja maior parte dos seus integrantes são pequenos proprietários que resistiram ao assédio da empresa, sobrevivendo como verdadeiros prisioneiros dos eucaliptos.
O excesso de agrotóxico utilizado permanentemente para a proteção dos eucaliptos levou à cegueira a algumas dezenas deles. Do Ticumbi ficaram cegos o Coxi Florentino e mais três irmãos (Roxo, Mário e Adilson) . Dessa família ainda tem o Berto, que é contraguia do atual grupo. Também foi vítima da cegueira o embaixador do rei de Congo, Acendino, e que vem a ser o pai do atual secretário, que atende pelo nome de Kino. Os antigos acima citados já não vivem mais. Acendino morreu recentemente.
Quanto ao estado precário da visão do mestre Terto, pode não estar nesse lote acima, por ele ter migrado há algum tempo para a sede do município de Conceição da Barra, muito embora tenha mantido por muito tempo uma propriedade também rodeada por eucaliptos. 
O que assegura a longevidade desse grupo de Ticumbi é com certeza a origem familiar de cada um deles. Se recorrermos aos seus antepassados que também integraram o grupo, vamos encontrar preponderando os troncos de Coxi e de Acendino, cuja origem é ainda do tempo da escravatura. 
Olhando para dentro do grupo atual, do pessoal do Acendino, encontram-se o seu filho, Kino, netos e bisnetos. Em 18 integrantes, oito pertencem à família dele. Da família do Coxi permanece o filho Berto. De troncos antigos, ainda tem Pintinho, que é filho do ex-contramestre Julinho e sobrinho dos antigos integrantes Dadáco e Athaíde. Já o mestre Terto tem no rei de congo, o filho Jonas, o membro atual de sua família, mas já teve o cunhado Benedito, que havia sido rei de Bamba.
Hermógenes, com a credencial quem mais vivenciou esse Ticumbi, costumava assinalar que, em vista ao exíguo número de integrantes,  apenas 18, esse grupo foi tomado por verdadeiras clãs negras que predominam por toda a sua existência.
E com atraentes exemplares de homens que ao longo dos anos encantaram e continuam encantando diferentes gerações de mulheres negras e brancas, que se rendem à beleza deles no ensaio geral, caindo em seus braços na dança, aos sons dos versos próprios no Forró de Sapezeiros, como conta a professora da Ufes, envolvida no embate dos quilombolas com as Aracruz Celulose, Simone Raquel Batista Ferreira.
Para quem não viu essa exuberante apresentação do Ticumbi de São Benedito, no dia 1 de janeiro, há ainda a oportunidade de vê-lo, no próximo domingo (dia 17 de janeiro), no encerramento da festa de Itaúnas.
Antes de finalizar a presente reportagem, fica a dúvida de como preservar o futuro desse Ticumbi de São Benedito com a credencial de ser a principal referência da raça negra no norte do Espírito Santo, diante dessa sua longa dependência com o mestre Terto? Mas ninguém precisa angustiar-se com essa indagação, as gerações futuras, com toda a certeza, responderam em seu tempo, como vem ocorrendo até agora. 
 

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