Seu João Miguel é guardião da tradicional Roubada da Bandeira em Prata dos Baianos
“Quem é rei nunca perde a majestade”. Este provérbio se materializa numa pequena localidade rural do município de Ecoporanga, no noroeste do Espírito Santo, perto da divisa com Minas Gerais e Bahia. No dia 24 de junho, com uma coroa na cabeça e uma capa no pescoço, João Miguel Pereira completou 108 anos de idade, como mestre de uma tradição que se caracteriza como a maior festividade do distrito de Prata dos Baianos. Há cerca de 40 anos se realiza sempre nesta data a tradicional Roubada da Bandeira.

Como um roubo pode se tornar tradição? Para quem não se lembra, a data, além de aniversário de Seu João, que não por coincidência deve levar este nome, é o dia de São João. Roubar a bandeira deste santo é uma brincadeira relativamente comum, embora cada vez mais rara, em festas juninas em Minas Gerais e no Nordeste brasileiro. No Espírito Santo, ela é única na Prata dos Baianos, herdada possivelmente dos estados vizinhos, mas mantida com afinco por famílias capixabas.
João Miguel nasceu em 1917, em Teófilo Otoni (MG), e veio ainda criança morar na zona rural de Ecoporanga. Chegou quando tudo ainda era mato, literalmente, como relatam os moradores. Famoso como “bom de roça”, Seu João trabalhou na agricultura até os 85 anos de idade e até os 90 percorria em bicicleta os 22 quilômetros de estrada de terra que distanciam sua residência da sede do município. Hoje sem enxergar e com a mobilidade um tanto limitada, vive cercado de cuidados pela família, tratado como um rei, sem luxo mas com uma majestade real.
Em seu aniversário, a família sempre teve como tradição realizar uma reza. Até que certo ano, possivelmente pela década de 80 – ninguém sabe precisar – alguém teve a ideia de roubar a bandeira de São João Batista, hasteada no quintal do aniversariante. No ano seguinte, como acontece em outros locais, o ladrão aparece para devolver a bandeira e sua família organiza um festejo para toda a comunidade. Reza a lenda que quem rouba a bandeira ganha proteção e a garantia de que não morre, ao menos até a festa seguinte. Mas essa imortalidade provisória tem seus custos.
Os ladrões generosos
“É muita responsabilidade, não é brincadeira”, diz a gatuna que roubou flâmula santa numa noite de 2024. Bom, eu diria que é brincadeira sim, mas brincadeiras não estão isentas de pequenas ou grandes responsabilidades, como é o caso. Ela tira um momento para falar conosco em meio aos intensos preparos de sua família no dia do festejo: bandeirolas na rua, comida sendo servida na varanda já rodeada de famintos, enquanto o vaivém é intenso dentro da casa.
Depois da noite do dia 24, quando o mastro é hasteado no quintal de João Miguel, a bandeira ficou exposta à espera de algum ladrão. A gatuna confessa que há um certo temor de que diante do trabalho e da responsabilidade que o roubo exige, ninguém pegue a bandeira e a maior festa do ano não aconteça. Mas no ano passado, três dias depois da fincada, quando faltou luz na região e o breu se estabeleceu, ela se animou junto a um primo a pular o muro para buscar a famosa bandeira. O mastro gigante é difícil de ser subido, e o cúmplice o derrubou sobre uma mangueira ao lado, subindo na grande árvore para buscar a cobiçada.
Desde então, como todo ano, se estabelece o mistério. Entre fuxicos e brincadeiras, fica no ar a pergunta no distrito: quem roubou a bandeira? Geralmente o mistério permanece até o momento da devolução, mas a família já é conhecida ao amanhecer do Dia de São João, quando se evidencia o preparo do festejo. Mas encontrar a responsável direta não foi difícil, pois a mesma orgulhosamente se entregou quando a procuramos pela manhã: “Fui eu!”, e nos levou até seu quarto para mostrar a bandeira escondida por um ano, com uma surpresa especial para a noite de entrega.
Embora o ladrão mude a cada ano, a responsabilidade da família de João Miguel é anual. Há comida dos dois lados, tudo bancado pelas duas famílias: almoço com churrasco, cachorro quente, quentão e uma série de quitutes juninos.

Depois do almoço farto na casa dos mais generosos “ladrões” que conheci, com direito a repeteco, seguimos para o quintal de Seu João, que aparece ainda sem as vestes reais. No clima de preparativos, no terreiro homens cortam lenha para a fogueira, mulheres cortam batatas, crianças brincam de Gato Mia. Se ouve música a um volume não tão alto que impossibilite escutar grunhidos por porcos do terreno ao lado.
O tempo passa do ritmo de roça para quem assiste, embora para quem trabalha na organização do festejo esse seja provavelmente o dia mais corrido do ano. Depois de um bom tempo, filhos e netos chamam as pessoas espalhadas a se juntarem para a tradicional missa em homenagem ao aniversariante. Um violão e um tambor feito com uma antiga embalagem de querosene já se juntavam às vozes ensaiando algumas ladainhas.
Comer, rezar, festejar
A reza é breve e antecipa uma mesa de quitutes juninos, o “Parabéns pra você” do aniversariante (com direito a bolo e velinhas de 108 anos) e uma apresentação de uma das danças tradicionais do festejo na região: o nove, embalado por belas e singelas rimas. Não se dança em casais, mas em trios. Começa com três trios (daí o nome) em filas que se alternam ao ritmo das cantigas. Logo outros podem se somar, sempre de três em três, formando novas filas, que vão trocando de lugar. A dança do Vilão, outra tradição da época, fica para ser mostrada só à noite.
Mestre João Miguel canta “Um quilo de quiabo”. Vídeo: Bruno Miranda
Um grupo de adolescentes de uma escola estadual do distrito de Imburana está presente e tem uma breve conversa com o mestre e familiares, que faz parte de uma disciplina eletiva chamada “Rolê Cultural”. Voltamos para a casa da família que guarda este ano a bandeira roubada, felizmente há apenas duas quadras dali.
Lá também tem uma reza, seguida de cachorro quente – haja estômago! De corpo e alma alimentados, a noite vai chegando e com ela o grande momento da festa. A gatuna do ano ressurge agora “na beca”: as roupas cotidianas dão lugar a vestes juninas no melhor estilo cowgirl, seguido à risca pela irmã. Uma de cada lado, seguram a bandeira, cuja novidade é estar rodeada de luzezinhas. Partem em passo apressado, enquanto os detrás ainda acendem as tradicionais velas que acompanham a procissão. O canto ecoa pelas ruas:
“Minha gente vamos levar,
a bandeira pro seu lugar
Fez um ano que ela foi embora
hoje ela tornou a voltar
Dia 24 de junho
é o dia de São João”

São dadas algumas voltas curtas pelo distrito para fazer mais longo o caminho até a casa próxima de Seu João, que espera a chegada dos réus confessos. Da entrada da casa, a família do aniversariante sai cantando a mesma música com ligeira diferença: “A bandeira de São João / É hoje que ela vai voltar / Faz um ano que ela foi embora…”
O encontro das famílias é um dos momentos altos da festa com as duas procissões se encontrando frente à frente. Os anfitriões recebem e trazem os ladrões para dentro do quintal. A partir daí tudo é encenação. Mas me pergunto se a vida toda não é. A “ladra” conduz a bandeira iluminada e se ajoelha aos pés do humilde rei, agora já também com sua roupa de majestade.
A autoridade a recebe, mas em seguida entra em ação o delegado e um guarda. A gatuna é levada até a Delegacia de Polícia da Prata dos Baianos, que só existe neste dia do ano, em uma cela de madeira com uma placa escrita à mão que a identifica. Mas ela não vai ficar só no xilindró rural. Logo seus cúmplices são denunciados pelo público, e em poucos minutos a cadeia está lotada com toda a família.

A acusada principal revela que fará uma delação premiada – mostrando como a brincadeira antiga se renova com traços contemporâneos. Ela ganha um habeas corpus, sai da cadeia e denuncia mais um comparsa que passava despercebido e tarda a ser encontrado e encaminhado para a detenção amadeirada. Há uma agitação lá dentro: entre risadas e gritos indignados, presos reclamam do calor, das condições precárias, entre outras queixas, o que nos faz lembrar que estamos no estado do Espírito Santo. Do lado de fora as autoridades parecem temer uma rebelião, mas ainda há um julgamento a acontecer.
A juíza pergunta pelo advogado dos criminosos. Não aparece ninguém. A brincadeira é puro improviso. É nomeado então um advogado dativo, chamado do meio do público, que faz uma defesa enérgica. “O roubo foi por uma boa causa, para manter essa festa maravilhosa”. O argumento potente é recebido com alguma desconfiança pela juíza. Ela manda soltar crianças e idosos primeiro e depois as mulheres. Por último saem os homens e todos absolvidos são absorvidos pela festa.
A guerra de fogos, que começara timidamente no início do dia, se acirrou durante a procissão e agora entra em seu auge. Os fogos de artifício tradicionalmente são disparados da casa de João Miguel e da família do ladrão, testando quem tem mais poder de fogo.

Com a bandeira recuperada e o céu explodindo, a noite de São João é coroada com a fincada do mastro, tendo um São João agora reluzente no alto, à espera de um novo ladrão para que não morra a tradição. A festa segue com mais comida em fartura e bebidas para esquentar junto à fogueira, no aguardo da apresentação das danças tradicionais.
Os ladrões à espreita terão que esperar. Na noite do dia 24, há guardas em vigia, até às 18 horas do dia seguinte, quando a bandeira pode voltar a ser roubada, por quem tiver coragem e responsabilidade. É brincadeira ou não é?