terça-feira, outubro 28, 2025
23.9 C
Vitória
terça-feira, outubro 28, 2025
terça-feira, outubro 28, 2025

Leia Também:

Projeto leva oficinas de teatro à unidade prisional LGBTQIA+ em Viana

Oficinas buscam contribuir com a ressocialização de pessoas duplamente marginalizadas

Arquivo pessoal

No Complexo Penitenciário de Viana, na região metropolitana, um projeto busca contribuir por meio da arte na ressocialização das pessoas em situação de privação de liberdade na primeira unidade prisional do Brasil a receber exclusivamente pessoas LGBTQIA+. Com objetivo de possibilitar a expressão e o autoconhecimento dos internos, a iniciativa “Palco Livre: teatro no presídio” é uma oficina de iniciação teatral que será realizada pelo ator Antonio Lopes de Souza Neto (Antonio Marx), coordenador do projeto, que também é servidor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), em colaboração com o Núcleo de Direitos Humanos e Saúde (NuDHS) do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da instituição.

A oficina terá quatro meses de duração e culminará em um exercício cênico dentro da própria unidade prisional. Apesar do entusiasmo com a nova edição, Antonio Marx critica a ausência de uma política institucional da Secretaria de Estado da Justiça (Sejus) para fomentar projetos de arte e cultura nas prisões, que hoje dependem sobretudo do esforço individual de servidores e colaboradores voluntários. O atual projeto só será possível porque foi contemplado pelo edital Territórios e Diversidade da Secretaria de Estado da Cultura (Secult), com recursos do Funcultura e da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), do Governo Federal.

A proposta já teve uma experiência anterior em 2021, quando Antonio foi convidado pelo então diretor do Presídio de Segurança Média 2 (PSME2) para conduzir uma oficina piloto. Naquela época, a unidade ainda não contava com iniciativas artísticas, embora já oferecesse oficinas de costura, reaproveitamento de lonas e salão de beleza.

“Na primeira edição nós testamos o espaço, vimos que a oficina funcionava bem e que havia um grande interesse dos participantes. Foi uma experiência transformadora, que me motivou a apresentar o projeto em edital e buscar recursos para estruturá-lo de forma mais sólida”, relata Antonio, destacando a ampla adesão dos internos e impacto positivo na autoestima e no comportamento.

Desta vez, o “Palco Livre” terá a inclusão de dois bolsistas, estudantes universitários, o que foi possível graças ao financiamento obtido. Para o coordenador, a presença de jovens da Ufes é um ponto fundamental, pois cria uma ponte entre a universidade e o sistema prisional, aproximando a formação acadêmica de realidades sociais complexas. “Forma profissionais mais sensíveis aos desafios e às mazelas da sociedade, que vão carregar essa vivência para sua trajetória profissional”, afirma.

A oficina prevê encontros semanais de uma hora e meia, de agosto a dezembro, envolvendo exercícios de jogos teatrais, improvisação e construção coletiva de um espetáculo. A proposta é que os participantes, ao mesmo tempo em que experimentam novas linguagens, possam discutir temas relacionados a direitos humanos, cidadania e diversidade.

Para Antonio, o teatro tem um grande potencial para a educação em direitos humanos, porque permite trabalhar conteúdos a partir da experiência e das emoções. “Em uma hora de oficina, o preso pode se transportar para outro lugar, se imaginar em outra realidade, experimentar outras perspectivas. Isso mexe com os sentimentos e abre espaço para reflexões profundas”, explica.

Ele destaca que a arte complementa, e em alguns casos potencializa, os benefícios de outras atividades já existentes. “Você trabalhar a mão, costurar, fazer peruca, cuidar de uma horta, é muito produtivo e potente. Mas trabalhar com a arte, que mexe com os sentimentos, é ainda mais transformador para esses indivíduos que são duplamente marginalizados, por serem LGBT e estarem em conflito com a lei”.

A experiência do “Palco Livre” também permitiu que Antonio observasse de perto a dinâmica dos projetos de ressocialização no Espírito Santo. Membro da banca do Prêmio Humaniza Sejus, ele avalia mais de 100 iniciativas apresentadas por servidores e diretores das unidades prisionais em 2025. Entre elas, estão hortas, rádios comunitárias, oficinas de música, piscicultura e diversas formas de artesanato.

Apesar da criatividade e dedicação dos profissionais, ele vê um problema estrutural: a ausência de uma política formal da Sejus para garantir a continuidade e o financiamento dessas ações. “As atividades são desenvolvidas por servidores e policiais penais por conta própria, muitas vezes sem nenhum recurso institucional. Quando a direção muda, o projeto pode simplesmente acabar. A Sejus deveria oficializar esse incentivo”, critica.

Para ele, se houvesse uma política clara, com apoio técnico e financeiro, a ressocialização poderia alcançar outro patamar. “Eu acredito que a ressocialização só vai atingir seu objetivo quando for feita com pessoas engajadas, que trabalham com amor e identidade, mas também com respaldo institucional. Hoje, dependemos da boa vontade de alguns. Falta uma política de Estado”, reitera.

O público-alvo da oficina são 25 internos selecionados pela direção do presídio. Além da participação direta, cerca de 300 presos da unidade, além de familiares, convidados e policiais penais, poderão assistir ao exercício cênico que será montado ao final do projeto.

Antonio lembra que os resultados da edição piloto foram surpreendentes. Muitos internos, sobretudo travestis e homens gays, mostraram grande dedicação e talento. Alguns já tinham experiência com teatro e outros se descobriram no processo. “Houve melhora no comportamento, aumento da autoestima e maior desenvoltura para se comunicar. Pessoas tímidas se soltaram, se tornaram mais comunicativas. É uma mudança visível”, conta. A expectativa para este ano é de que, além de repetir esses impactos, seja possível consolidar um grupo de teatro dentro da unidade, criando continuidade para a prática artística.

O Presídio de Segurança Média 2 foi o primeiro do Brasil a se tornar uma unidade exclusivamente LGBTQIA+, em 2021. Localizado no Complexo Penitenciário de Viana, abriga atualmente 360 pessoas privadas de liberdade, entre gays, lésbicas, travestis e transexuais.

Para Antonio, esse caráter torna a unidade um território de grande potencial para experiências transformadoras. “Estamos falando de uma população duplamente vulnerabilizada. Criar espaços de arte e cultura nesse contexto significa dar voz e visibilidade e oferecer perspectivas de futuro. É um trabalho de ressocialização, mas também de dignidade”, ressalta.

Mais Lidas