Quinta, 02 Mai 2024

Reportagem especial Receita simples

Reportagem especial Receita simples
Texto: Henrique Alves
Fotos: Gustavo Louzada/Agência Porã
 
A cidade é para as mercadorias ou para as pessoas? A questão que em agosto pairou em torno da Praça do Cauê retorna agora, igualzinha, em torno dos armazéns da Codesa, no Centro de Vitória. Lá advogou-se a abertura da praça para a implantação do Sistema BRT (via exclusiva para ônibus). Aqui, mais ou menos a mesma coisa: uma história a menos igual a mais capacidade econômica e fluidez. 
 
Durante reunião do Conselho Estadual de Cultura, realizada no último dia 3, na Biblioteca Pública Estadual (BPES), a Codesa apresentou o “Projeto de Revitalização do Centro”. Fundamentalmente, este prevê a demolição dos armazéns 4 e 5 do Porto de Vitória e o reaproveitamento dos outros três como uma estação para o BRT. No lugar dos armazéns 4 e 5, nascerão um novo pátio de estocagem e um novo prédio da Codesa.
 
Poderíamos destacar o aspecto histórico do conjunto dos armazéns, erguidos entre 1929 e 1940, e sua inegável importância - tanto que desde 2011 os armazéns atravessam um processo de tombamento em âmbito estadual. Mas, aqui, vamos nos ater à importância de uma história recente, digamos assim.
 


Dependêssemos nós da agenda das principais casas de show de Vitória, estaríamos fadados à mesmice. Todo ano tem: Lulu Santos, Os Paralamas do Sucesso, Capital Inicial, Titãs, Skank, et cetera, et cetera. Nada contra. Os donos desses locais são empresários. O risco não os compraz, razão pela qual, entre o certo e o duvidoso, se agarram ao primeiro. O problema é que o certo costuma ser o mais do mesmo.
 
Criado em 2006 pela Prefeitura de Vitória, o projeto Estação Porto redesenhou essa dinâmica. O armazém 5 da Codesa contemplou o teatro, o cinema, a literatura, mas foi sobretudo a música que o consagrou como o talvez mais importante espaço cultural do Espírito Santo da primeira década do novo século.  
Mesmo sob condições acústicas precárias e sob o calor que os ventiladores suavam para abrandar, em incontáveis ocasiões o armazém virou o palco de nomes do cancioneiro tupiniquim que, de outro modo, dificilmente pisariam em solo capixaba. Os exemplos são muitos. E provocam uma saudade danada. 
 
Vamos a 2007. No ano anterior, a mina musical de Tom Zé concebeu mais uma joia: Danç-Êh-Sá, álbum sem letras, apenas música e onomatopeias. Foi com o show desse antirradiofônico disco que ele fechou o Festival Vitória em Canto daquele ano. No mesmo ano a cantora Elza Soares apresentou o show Beba-me, coalhado de clássicos de seu repertório e de canções dos então dois últimos e fundamentais discos: Do Cóccix Até o Pescoço (2002) e Vivo Feliz (2004).  
 
Em 2009, a cantora Roberta Sá era uma diva da MPB em franca ascensão quando se apresentou para uma Estação Porto tomada de gente. Certos shows lotavam o armazém a ponto do trecho da Avenida Getúlio Vargas que passa em frente ser fechado. Roberta Sá tinha apenas dois discos de estúdio - Braseiro (2004) e Que Belo Estranho Dia Pra se Ter Alegria (2007) - porém muito bem acolhidos por público e crítica.
 
Hoje uma artista consolidada na plêiade das cantoras da MPB, aquela foi a única passagem de Roberta Sá pelo Espírito Santo em show solo. 
 
O ano de 2012 nos deu outro dois exemplos de como a Estação Porto supriu uma certa demanda. O projeto Faixa a Faixa convidou grandes nomes para executar na íntegra álbuns históricos da nossa música e, para a estreia, vieram Moraes Moreira e Davi Moraes. Preta Pretinha, Mistério do Planeta, Brasil Pandeiro, A Menina Dança... A Estação Porto cantou em uníssono as joias de Acabou Chorare (1972), dos Novos Baianos.
 
Meses depois aportou a malemolência doce e preguicenta da cantora Céu. Também pela primeira vez no Espírito Santo, a paulista apresentou a turnê do disco Caravana Sereia Bloom, um dos principais álbuns lançados naquele ano. Armazém lotado, mais uma vez. No palco, a cantora sorriu surpreendida: não esperava tamanho público para vê-la em Vitória.
 
Luiz Melodia, o saudoso Pena Branca, Zeca Baleiro, João Donato, Roberto Menescal, Renato Teixeira, a combativa Leci Brandão (show memorável no primeiro ano do projeto), Casuarina, Arnaldo Antunes, Jorge Mautner, Comadre Fulozinha (banda pernambucana que teve entre as integrantes a hoje incensada cantora Karina Buhr). 
 
A Estação Porto cavou um espacinho na agenda de artistas que raramente se apresentam por essas bandas - à exceção talvez do Casuarina, do Arnaldo Antunes e do Roberto Menescal, que vieram para cá recentemente.
 
No rastro do advento de novas tecnologias de comunicação e, portanto, do reordenamento de antigos métodos, processos e parâmetros de produção cultural, o Brasil registrou na primeira década do novo século o aparecimento de diversos e inúmeros artistas - muitos fora das tradicionais fronteiras do Centro-Sul do país.
 
O armazém 5 da Codesa também acolheu artistas que são rebentos legítimos da nova lógica de produção musical: Marcelo Jeneci, A Banda Mais Bonita da Cidade, Karol Konká, Teresa Cristina & Os Outros (cantando Roberto Carlos), Orquestra Voadora, Moinho, Chinese Cookie Poets. Uns (Jeneci) lotavam; outros, (Chinese...) juntavam testemunhas. A Estação Porto, esse era o charme, podia arriscar.
 
A Estação Porto não apenas incluiu Vitória no roteiro de certos artistas como supriu uma demanda. Por que isso? Aí a gente cai numa velha questão: a falta de espaços culturais. Numa tacada só, a Estação Porto atendeu um conjuntos de expectativas e se consolidou como novo espaço cultural. 
 
Como? Trazendo artistas de médio porte, em shows gratuitos. Este ano, apenas para efeito de comparação, a agenda musical de Vitória voltou a se centralizar na iniciativa privada. 
 
Lógico que o projeto cometia seus pecados. Orgânicos, como o calor por vezes opressor. Técnicos, como o tratamento acústico. E “políticos”: mesmo que produtores locais tenham desenvolvido eventos - Vitória Cine Vídeo, Festival Sérgio Sampaio, shows de hip hop, hardcore, entre outros - faltou à Estação Porto uma melhor sistematização enquanto política pública. 
 


Hoje o louvável ponto fora da curva vem sendo os shows no Teatro do Sesi, em Jardim da Penha, com a oferta de artistas de ascensão recente (Mallu Magalhães, BNegão & Seletores de Frequência, Mariana Aydar, Tiê e, em novembro, a doçura brasileira/cubana de Marina de La Riva), como muitas vezes viu-se na Estação Porto.
 
Aqui, entretanto, há aquela inapelável diferença conferida pelo verniz da História. E essa diferença faz toda a diferença - perdoem a redundância. 
 
Ao que parece, o substantivo “revitalização” virou o convento das boas intenções. O projeto para a Praça do Cauê foi chamado de revitalização, mesmo comprometendo irreversivelmente o desenho original da praça, encravando duas pistas de três faixas cada no meio da praça. O projeto apresentado pela Codesa também abrigou-se ali: “Projeto de Revitalização do Centro”.   
 
Pois bem. Neste mundão globalizado em que vivemos, o fator “local” emerge como força de resistência à tendência da homogeneização cultural oferecendo a experiência do autêntico. Ao associar música a alguns dos elementos da identidade cultural de Vitória - o mar, o porto, seus armazéns, os navios - a Estação Porto ajudou a reforçar, ou mesmo reatar, um certo laço afetivo com a cultura local.
 
Isso sim, perdoem-nos nossos líderes do amanhã, isso sim está mais para revitalização. A Estação Porto foi uma das principais ações que reanimou uma relação afetiva com o Centro de Vitória, transformou-se num pulsante exemplo de que a cidade pode ser algo mais que um corredor de passagem entre a casa e o trabalho.
 
Os capixabas vivenciavam ali uma experiência cultural autêntica ao associar música a um conjunto arquitetônico banhando em história. E de forma gratuita: as pessoas tinham acesso livre a um espaço de convivência, aberto como um praça, com programação regular. Poderíamos evocar as atrações veranis da Praia da Camburi. Mas estas se restringiam ao verão. No porto, a continuidade semeou um vínculo, mais que tudo afetivo.

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