Medida foi defendida por Conselho do Iphan como “ato de reparação histórica”

O tombamento do Sítio Histórico e Arqueológico de São José do Queimado, localizado na Serra, foi aprovado por unanimidade pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), nesta quarta-feira (26). A conselheira Alessandra Ribeiro Martins, responsável pelo parecer, destacou a importância da Insurreição de Queimado, ocorrida em 1849 e reconhecida como um dos episódios mais significativos da resistência negra no País.
A partir da decisão, o sítio, que reúne as ruínas da Igreja de São José do Queimado, o cemitério associado, trilhas, paisagem, vestígios arqueológicos e a memória coletiva da comunidade afrodescendente local, passa a ser Patrimônio Cultural do Brasil, inscrito nos Livros do Tombo Histórico, Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. A partir da publicação, qualquer intervenção na área ou em seu entorno deverá ser previamente autorizada pela Superintendência da autarquia no Estado.
A relatora destacou que a história da Igreja de São José do Queimado está ligada à luta por liberdade. Documentos do período relatam que mais de 300 escravizados participaram da construção do templo, motivados por uma promessa de alforria atribuída ao pároco Gregório de Bene. Após anos dedicando domingos e feriados às obras, a mão de obra escravizada acreditava que a cerimônia inaugural seria o marco de sua libertação.
No dia 19 de março de 1849, durante a missa inaugural, os trabalhadores descobriram, porém, que a promessa não seria cumprida. A frustração transformou-se imediatamente em reação, que deu início à Insurreição de Queimado, liderada por figuras como Elisiário, Chico Prego e João da Viúva. A mobilização pretendia articular grupos de escravizados de diferentes regiões da então província capixaba. A repressão foi imediata e violenta. Os líderes foram presos e muitos condenados à morte. Outros fugiram, formando quilombos em áreas como Roda d’Água, Cariacica e Santa Leopoldina.
Apesar da brutalidade, a conselheira afirmou que o episódio permanece como símbolo da resistência negra no Espírito Santo e no Brasil, ainda que pouco reconhecido nacionalmente. Ela avalia que o apagamento desse episódio é resultado de um “racismo patrimonial”, consequência de um colonialismo que invisibiliza referências culturais negras. Por isso, o tombamento é também um gesto de reparação simbólica, capaz de devolver centralidade a uma narrativa que por muito tempo permaneceu marginalizada.
O processo de tombamento, iniciado em 2015, ganhou força a partir de investigações, diálogos comunitários e intervenções contemporâneas de consolidação estrutural realizadas em 2020, apontou a relatora. O espaço atualmente conta com sinalização e passarelas, painéis informativos, linha do tempo, acesso controlado e áreas destinadas a estudos arqueológicos. No interior da antiga igreja, permaneceram visíveis testemunhos do trabalho arqueológico, com pisos parcialmente expostos e marcações técnicas que revelam camadas de uso e ocupação do templo.
As ruínas da igreja, construídas com mão de obra escravizada, encontram-se estabilizadas, graças a obras de contenção que incluíram a instalação de arcos metálicos, reforços estruturais e elementos de aço que reconectam e sustentam as paredes remanescentes. Para a conselheira relatora, “as ruínas, quando preservadas, também reconectam ao presente”, lembrando que a materialidade degradada da igreja carrega as marcas de um povo que construiu história apesar da opressão.
Ela defende a necessidade de valorizar a revolta de Queimado na memória nacional, promover políticas transversais de igualdade racial e ampliar a articulação institucional para garantir a preservação do sítio. Documentos arqueológicos, como fragmentos de cerâmica, telhas, faianças, peças de vidro, ferro e objetos numismáticos, foram mencionados como parte essencial dessa proteção.
A deputada federal Jack Rocha (PT), primeira mulher negra eleita para ocupar a bancada capixaba na Câmara, ressaltou o significado histórico do tombamento para o Estado, que recebeu o último navio negreiro que aportou clandestinamente no Brasil. Ela reconheceu a importância política da decisão, descrita como “uma reparação histórica incalculável”, no contexto do Novembro Negro, e propôs a realização de uma cerimônia de celebração do tombamento no próprio sítio. “Hoje não estamos apenas mantendo as ruínas de pé, mas preservando nossa ancestralidade, nossa fé e tudo o que este patrimônio representa”, destacou.
Apesar dos avanços, o diretor municipal de Cultura, Lindomar Gomes, lembrou que ainda há desafios concretos. A região não possui linha de ônibus que chegue até o sítio. Segundo ele, a prefeitura já iniciou diálogo com a Companhia Estadual de Transportes Coletivos da Grande Vitória (Ceturb) para viabilizar o acesso por transporte coletivo, garantindo que mais visitantes possam conhecer o local.

